30 TONS DE NOIR
Entre os dias 30 de janeiro e 19 de fevereiro de 2017, o CINUSP Paulo Emílio apresenta a mostra 30 Tons de Noir, que conta com 30 filmes do estilo que se iniciou nos anos 1930 na França e se consolidou nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Cada filme será exibido apenas uma vez na Cidade Universitária, com algumas reprises no Centro Maria Antônia.
O termo noir foi inicialmente usado pela crítica cinematográfica francesa para se referir, em tom pejorativo, a obras consideradas demasiadamente pessimistas do chamado Realismo Poético, dos diretores como Jean Renoir, Marcel Carné, Julien Duvivier, Jean Grémillon e Jacques Feyder, todos presentes nesta mostra. Segundo o uso que dela faziam os críticos franceses, designava filmes de tom trágicos, atmosfera sombria, temas adultos e anti-heróis de caráter duvidoso, que demonstravam o desalento e os fracassos morais do homem contemporâneo naquele contexto de guerra mundial iminente.
Após a 2ª guerra, com a exibição na França de filmes norte-americanos, críticos franceses encontraram semelhanças entre o Realismo Poético francês e obras como O Falcão Maltês, de John Huston, Laura, de Otto Preminger, Farrapo Humano e Pacto de Sangue, de Billy Wilder, todas presentes nesta mostra. Assim como os filmes franceses, a produção norte-americana de film noir formava um quadro geral que negava o maniqueísmo, rejeitando os rígidos padrões morais da época. Para maiores informações sobre o termo e a estética do Noir americano, além dos seus desdobramentos na história do cinema, conferir o texto da mostra realizada em 2015 no CINUSP: http://cinusp.dobralab.com.br/mostra/2015/01/mostra_neonoir
O film noir também representou a incorporação ao cinema norte-americano de traços do cinema europeu, graças à imigração de profissionais do cinema impulsionada pela Segunda Guerra Mundial. Um destes profissionais foi o alemão Fritz Lang, com dois filmes presentes na mostra: M, O Vampiro de
Dusseldorf e Almas Perversas, uma refilmagem produzida nos EUA do filme A Cadela, de Jean Renoir, também presente na mostra. Já o italiano Luchino Visconti foi assistente de direção de Renoir no filme Toni, e está representado na mostra com o filme Obsessão, considerado um dos marcos iniciais do cinema neorrealista.
Com estes filmes, a mostra 30 Tons de Noir pretende realçar a influência da filmografia francesa no que se convencionou a se chamar de cinema noir americano. Longe de querer encontrar uma gênese para o gênero americano, o intuito é aproximar duas cinematografias separadas por um oceano e uma década, além de apresentar clássicos franceses poucos exibidos no Brasil.
O Realismo Poético, ou Realismo Noir, surge na década de 30 após o advento do cinema sonoro. Apesar de não possuir uma estética única, algumas marcas temáticas e estilísticas são encontradas: o tom pessimista com que a humanidade é retratada, imagens escuras, a utilização de sombras e nevoeiros como elementos visuais significativos, a escolha por representar estratos mais baixos da sociedade. Com a inclusão das falas, o cinema se tornou mais complexo, mais realista e psicológico. Dentro dos gêneros cinematográficos, os temas começaram a se misturar, reunindo no interior de cada filme elementos inicialmente pertencentes a outros gêneros. Essas modificações são motivadas, para além do advento do cinema sonoro, pelo aumento do público cinematográfico. Vale lembrar que nesse período o happy end ainda não era uma norma na indústria, possibilitando filmes com um caráter mais sombrio, mais noir.
Jean Renoir, o mais famoso entre os diretores, está presente com três obras. A cadela (1931), uma adaptação da obra de Georges de La Fouchardière, Toni (1935), baseado em notícias criminais, e A Besta Humana (1938), adaptação do livro de Émile Zola. Toni é um dos filmes mais emblemáticos do período. Tratando de um crime passional, narra os encontros e desencontros de amantes proibidos. A obra é baseada em fatos reais e busca traçar a moral das relações individuais por meio de personagens ambíguos e autodestrutivos. Tendo Luchino Visconti como assistente de direção (quase uma década antes dele filmar Obsessão), foram utilizados cenários reais além de possuir comentários sociais implícitos na obra. O filme francês é considerado precursor da estética do neorrealismo italiano.
Marcel Carné é, sem dúvida, o diretor que mais exprime as ideias do Realismo Noir francês. A tríade formada por Cais das sombras (1938), Hotel do Norte (1938) e Trágico Amanhecer (1939, esse filme não está presente na mostra por ter sido exibido recentemente na mostra 100 Paulo Emílio do CINUSP) dá o tom trágico realista criticado na época. Cais das Sombras foi um grande sucesso de público e ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais, mesmo assim foi fortemente criticado na França, que estava sendo governada pelo Front Populaire, tendo sido inclusive considerado um “filme fascista” por Jean Renoir na época do seu lançamento. Na Itália o filme causou um forte impacto, sendo inclusive a primeira vez que o termo neorrealismo foi utilizado para designar um filme, na resenha sobre Cais da Sombras do crítico e teórico cinematográfico italiano Umberto Barbaro. O boulevard do crime (1945) segue outro caminho. Tendo sido realizado sob a ocupação nazista na França, foi o primeiro filme francês lançado após a libertação, ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de o epiteto noir não se encaixar ao filme, essa obra demonstra a posição em que Marcel Carné se encontrava no período: impossibilitado de realizar seus dramas trágicos, realizou um grande filme de evasão, que hoje é considerada uma das maiores obras-primas do cinema.
No início de sua carreira, Carné trabalhou como assistente de direção nos filmes A última Cartada (1934), Pensão Mimosas (1935) e A Quermesse Heróica (1935) do diretor Jacques Feyder. Carné considerava Monsieur Feyder (como o chamava) o seu pai espiritual, o seu guia. Após a morte de Feyder, em 1948, fez o filme Teresa Raquin (1953), remake do filme homônimo de Jacques Feyder realizado em 1928 e que é considerado perdido. A Quermesse Heróica, único filme de Feyder na mostra, recebeu o Grand Prix du Cinéma Français em 1936. O filme é uma farsa irônica ambientada no século XVII. Feyder se baseia em pinturas flamengas não apenas nos cenários e figurinos, mas também no tom geral da obra.
Tendo realizados seus primeiros longa-metragens ainda no período mudo, Jean Grémillon foi um dos pioneiros franceses do cinema sonoro. La Petite Lise (1930) surgiu após dois projetos escritos por Grémillon e Charles Spaak terem sidos rejeitados por excesso de experimentalismo. Com base em uma trama melodramática, Grémillon criou uma obra em que os elementos sonoros são experimentados como complementos e contrastes entre som e imagem. Muitos críticos enxergam o filme como a semente do
realismo poético francês. Águas Tempestuosas (1941) mais uma vez mostra a força de Grémillon em transformar uma história melodramática em algo muito mais profundo. O filme possui um tom soturno, em que o mar se torna o principal protagonista, marcando os destinos das personagens. Mulher Cobiçada (1949) traz um importante debate para mostra: realizado após a recepção dos filmes americanos, o que mudou no noir francês?
Julien Duvivier produziu filmes por quase 50 anos, tendo realizado mais de 70 obras. A Bandeira (1935) é um dos primeiros filmes que cria o “mito Gabin”, por causa do destino noir das personagens interpretadas pelo ator Jean Gabin. Seguido de Camaradas (1936) que precisou ter uma versão com final diferente da original para ser lançada na época, marcada pelas ideias do Front Populaire. O Demônio da Argélia (1937) é o filme mais conhecido do diretor. Melodrama noir, influenciou o cinema americano, desde clássicos como Casablanca (1942), sendo inclusive refilmado duas vezes nos EUA, uma em 1938 e depois transformado em musical em 1948. Duvivier ficou os anos da guerra nos EUA e já havia tido contato com o que posteriormente ficaria conhecido como film noir americano. Em seu primeiro filme de volta à França, Pânico (1946), cria um drama envolvendo um assassinato, uma investigação policial e uma femme fatale, elementos clássicos do noir americano.
Henri-Georges Clouzot vem de uma geração posterior aos principais realizadores do Realismo Noir. Muito influenciado por Alfred Hitchcock, seus filmes se aproximam mais do suspense que ao noir americano. Sombra do Pavor (1943) é um suspense noir com influências tanto hitchcockianas como do realismo poético francês e foi refilmado nos EUA por Otto Preminger, em 1951.
Vale citar que um grupo de cineastas da Alemanha que irão consolidar suas carreiras nos EUA, ao fugirem da Alemanha no período da guerra, realizaram filmes na França antes de irem realizar filmes noir americanos. Billy Wilder, presente na mostra com os filmes Farrapo Humano e Pacto de Sangue, realizou em parceria de Alexandre Esway o filme Semente do mal (1934), Max Ophüls realizou o filme Sem Amanhã (1939), assim como Robert Siodmak fez o Ciladas (1939) na França, ambos presentes na mostra. Aqui, destacamos os filmes americanos Na teia do destino (1949), do Ophüs, e Os Assassinos (1946) do Siodmak. É importante ressaltar que Robert Siodmak, Billy Wilder, Edgar G. Ulmer e Fred Zinnemann (esses dois últimos alemães que também migraram para os EUA e fizeram film noir) realizaram o filme Gente no domingo (1930), que faz parte do movimento da Nova Objetividade, que era uma reação ao Expressionismo.