INFÂNCIA - LUGAR DE MIRAGEM


O CINUSP convida o público a não apenas olhar para a criança, mas ver através dela a desbravar as miragens e fantasias que transmitem simbolicamente as ansiedades, aspirações e detalhes atentos desta fase da vida e a deixar-se mirar desde o olhar da criança colocada em lugar de protagonismo.  

O ponto de vista da criança é um lugar peculiar que tem o potencial de promover experimentação e inovação da linguagem cinematográfica. Ao se explorar a fronteira entre a imaginação e a realidade, bastante tênue no universo infanto-juvenil, o protagonismo da criança no cinema desafia cineastas a serem inventivos no modo de contar suas histórias.
A Infância de Ivan (1962) é o primeiro filme de Andrei Tarkovsky. Em meio à Segunda Guerra Mundial, o órfão russo Ivan teve seus pais mortos pela invasão alemã. Revoltado, Ivan pragueja contra a guerra e afirma querer lutar pela Rússia. De dia, vemos Ivan agir com bravura diante dos demais soldados russos. Mas, à noite, quando fecha o olhos, acompanhamos seus sonhos, representados com paisagens oníricas, acontecimentos surreais e imagens negativadas.

O filme Indomável Sonhadora (2012), apesar de ser uma ficção, apresenta uma abordagem propositadamente documental. Surpreende com o contraste entre o ambiente estéril de uma ilha alagada e a imaginação de uma menina de 6 anos onde habitam ferozes animais pré-históricos. Nas cenas entre pai e filha emana a eletricidade insurgente de uma relação na qual a selvageria é incentivada em virtude de uma não domesticação da infância; nos momentos de solidão ouvem-se as conversas secretas em voz over entre Hushpuppy e sua mãe ausente.

Alguns filmes utilizam recursos como a animação para escapar do realismo da imagem. A animação 3D é utilizada em  Onde Vivem os Monstros (2009) e cria uma contraposição ao ambiente familiar em lifeaction. O filme transborda uma sensação de deslumbramento e pavor quando Max, um menino de 9 anos, veste seu traje de lobo, age como um animal e foge em direção a uma ilha repleta de monstros selvagens e amorosos. ​

Ninguém Pode Saber (2004) explora a ambivalente liberdade infantil que oscila entre a aventura de não estar sob os cuidados de um adulto e o mal-estar palpável da ausência. Koreeda faz uso de uma abordagem intimista, sinestésica, com uma câmara atenta aos pequenos detalhes da vida de crianças abandonadas pela mãe e deixadas aos cuidados de Akira, o irmão mais velho de 12 anos.  ​​

As maravilhas (2014) apresenta Gelsomina, uma menina inserida numa excêntrica família de apicultores na qual ela é a chefe mesmo diante da presença dos pais.  Alice Rohrwacher faz um retrato delicado e bem-humorado da despedida da infância e suas reminiscências. 
Os sonhos de uma criança também se relacionam com a descoberta de sua auto-imagem ou “auto-miragem”.  Pelo Malo (2013), da diretora colombiana Mariana Rondón, tem como protagonista Junior, um garoto negro de 9 anos que sonha em alisar o cabelo, e coloca em discussão questões de raça, papéis de gênero e sexualidade.  ​

Minha Vida em Cor de Rosa (1997) retrata a transexualidade de forma lúdica e graciosa através da direção de arte. Dentro de um programa de televisão existe um mundo fantástico e colorido onde Ludovic se refugia quando quer usar usar vestidos e voar. No núcleo familiar, no entanto, paira o conflito entre a aceitação dos pais, o preconceito dos vizinhos e a convicção que Ludo expressa ao afirmar: “Eu sou um menino-menina”, que ecoa como um ruído nas estruturas normativas nas quais a criança está inserida.  

Permeando esses filmes que assumem o protagonismo infantil, fica claro que há um traço dramatúrgico particular referente ao campo de ação da personagem criança que age subordinada ao mundo adulto. Em geral, existe uma imposição hierárquica do adulto em relação à criança, gerando uma relação de incomunicabilidade. É notável que os preceitos do mundo adulto, suas convenções sociais, normas de conduta e moralidade não estão completamente sedimentados na personalidade da criança. Personalidade esta muitas vezes ambivalente, que oscila entre a coragem e o medo, a vulnerabilidade e a violência, o delírio e o trauma. Então, o olhar da criança é muitas vezes explorado no cinema a partir de um movimento simultâneo e contraditório de assimilação e contestação do mundo adulto, no qual tudo é estrangeiro.​

Zero de Conduta (Jean Vigo, 1933) é uma revolução de crianças. Obra-prima do cineasta francês Jean Vigo, o filme retrata a revolta de crianças de um internato que decidem “tomar o poder”. Trata-se não de uma única protagonista criança, mas de uma coletividade de crianças que, amotinadas, rejeitam em grupo os padrões de conduta impostos pelos adultos.

O primeiro filme de François Truffaut, Os Incompreendidos (1959), é um marco do protagonismo infantil. O personagem icônico Antoine Doinel sofre a repressão do mundo dos adultos e é punido severamente por suas ações, às vezes sem nem entender bem o porquê. Sua fuga é ao mesmo tempo literal e fantasiosa. Seu escape, suas perambulações, ainda que representados de maneira realista, revelam a busca de um mundo distante da austeridade adulta.

De maneira semelhante, Ahmad de Onde fica a casa de meu amigo? (1987), se contorce para esquivar-se das punições dos adultos, que acreditam em uma educação moralista e extremamente rígida. O realismo de Kiarostami não permite grandes representações oníricas ou fantasiosas, mas o caminho da protagonista na narrativa revela a necessidade de construir um mundo infantil de cumplicidade para sobreviver à severidade dos mais velhos.  

Serão também exibidos Cria Corvos (1976), que explora o limiar entre passado e presente na mente de Ana, uma criança imaginativa e assombrada pelo luto dos pais; O Lixo e o Sonho (1999) primeiro filme da diretora Lynne Ramsay que ensaia a coexistência paradoxal da beleza e da sujeira fazendo emanar das imagens uma poesia crua. E ainda Kamchatka (2002), cujo protagonista, Harry, de 10 anos, acompanha sua família em fuga da ditadura militar argentina.

Os fascinantes filmes selecionados pela curadoria apresentam histórias guiadas pelo olhar pueril que permite que temáticas complexas como a morte, a solidão e a sexualidade sejam representadas de forma criativa sob uma perspectiva menos convencional, porém desde um lugar bastante familiar, para quem já foi criança.