TRAUMA CULTURAL NA IRLANDA E NO BRASIL
O CINUSP Paulo Emílio apresenta de 14 a 25 de agosto a mostra Trauma Cultural na Irlanda e no Brasil, com filmes e debates que exploram diferentes momentos históricos desses países. Em sua definição, o trauma cultural ocorre quando membros de um grande grupo, ou mesmo de uma nação inteira, vivenciam eventos que deixam marcas permanentes em suas memórias e em sua consciência coletiva, alterando e reconstruindo sua identidade.
Em 1922, a Irlanda do Sul tornou-se independente após violentos conflitos entre irlandeses e britânicos. Um dos episódios mais marcantes dessa época foi a revolta armada de 1916, conhecida como Levante da Páscoa. Esses acontecimentos são tema do filme 1916: The Irish Rebellion (2016), narrado pelo ator irlandês Liam Neeson, que será exibido no dia 24 de agosto. Em seguida, haverá debate com Bríona Nic Dhiarmada, professora da Universidade de Notre Dame e produtora do filme, e Laura Izarra, professora livre-docente da USP e coordenadora da Cátedra de Estudos Irlandeses.
Após a independência, o território ficou dividido entre a Irlanda do Sul, com capital em Dublin, e a Irlanda do Norte, parte do Reino Unido. A assinatura de um acordo não trouxe a paz, mas sim novas divisões entre os cidadãos por motivos étnicos e religiosos, como os conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte. Baseado em uma história real, Jimmy’s Hall (2014) retrata uma comunidade rural irlandesa após a independência, caracterizada pela pobreza, pela opressão cultural e por conflitos com a igreja católica. Ainda na área rural, Nó na garganta (2014) é baseado no romance homônimo de Patrick McCabe, escritor irlandês conhecido por seus romances violentos e obscuros, e mostra o trauma através dos problemas psicológicos de um garoto na década de 1960. O filme expõe uma sociedade marcada pela paranoia e pela violência, articulando os traumas coletivo e individual.
A partir do final da década de 1960, a Irlanda do Norte presenciou uma série de conflitos políticos conhecida como The Troubles, resultando na morte de mais de 3.500 pessoas. Um acordo na tentativa de solucionar o conflito seria assinado somente em 1998. Os abusos praticados pelos britânicos (como prisões sem julgamento e torturas) chamaram a atenção do relatório da Anistia Internacional sobre tortura em 1975. As feridas deixadas pelo conflito são retomadas até hoje no cinema, na literatura, nas artes plásticas e em outras manifestações artísticas.
Após uma série de protestos, tem início, em 1981, na Prisão de Maze, Irlanda do Norte, uma greve de fome liderada por prisioneiros do IRA (Exército Republicano Irlandês). Dentre os grupos revolucionários que lutaram pela independência da Irlanda, o IRA passou a atuar contra o Exército Inglês na Irlanda do Norte, intensificando suas ações a partir da década de 1960. Entre outras demandas, membros do IRA reivindicavam ser tratados como prisioneiros políticos e não como criminosos comuns. Premiado no Festival de Cannes, Fome (2008) apresenta as violências diárias sofridas pelos prisioneiros e retrata de maneira impressionante as formas de resistência adotadas por eles.
Em Nós Estivemos Lá (2014), mulheres que trabalharam nas prisões irlandesas de Maze e Long Kesh ou que tinham familiares e amigos presos relembram o cotidiano e o impacto dos anos de conflito em suas vidas pessoais. No dia 23 de agosto, o diretor Cahal McLaughlin estará presente durante a sessão para debate sobre o filme.
Na década de 1970, a escalada de violência foi seguida por medidas de segurança rígidas e novas leis que permitiram prisões por suspeita de "terrorismo". Este é o tema de Em Nome do Pai (1993), que recebeu o Urso de Ouro de Berlim em 1994. O filme é baseado na autobiografia de Gerry Conlon, que ficou 15 anos na prisão após ser condenado injustamente por um atentado do IRA a um pub inglês.
O experimental Elephant (1989) traz uma série de assassinatos cometidos friamente. O olhar distanciado não se preocupa em apontar identidades ou os lados do conflito. Concebido para televisão, o diretor propõe exibir nas salas de estar de todo o Reino Unido a violência que assolou as ruas irlandesas.
No Brasil, a constituição de uma identidade nacional também foi marcada, ao longo da história, por eventos ou períodos de trauma coletivo, como a luta por terras presente na história do país desde a colonização até os dias atuais e o trauma mais recente deixado pelos abusos cometidos na Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985). Os assassinatos de indígenas e a demora em se demarcar suas terras até hoje são um trauma que ainda busca reconhecimento nacional.
Que bom te ver viva (1989), da diretora Lúcia Murat, traz depoimentos de mulheres que, como ela, sofreram torturas durante o regime militar. As cenas do dia a dia e os depoimentos dessas mulheres, que buscam reconstruir suas vidas, são intercalados pelo monólogo de uma personagem fictícia interpretada pela atriz Irene Ravache e por manchetes de jornais do período ditatorial.
A luta no campo durante o período militar aparece em Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. O filme parte do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, no início da década de 1960, e aborda os desdobramentos desse episódio e dos acontecimentos políticos durante o regime ditatorial. Imagens dessa época são intercaladas com entrevistas posteriores com sua esposa, Elizabeth Teixeira, e com parentes e amigos, que são convidados a assistir às gravações e relembrar os fatos.
O genocídio indígena no Brasil é abordado em Martírio (2016), fruto de um extenso trabalho de pesquisa em campo do indigenista Vincent Carelli. O filme traz depoimentos colhidos nas tribos e gravações que acompanham o desenrolar da questão no Congresso.
O CINUSP convida o público a assistir a esses filmes, que retomam acontecimentos que marcaram as histórias irlandesa e brasileira.
A mostra é resultado de parceria com o Irish Film Institute, a Cátedra de Estudos Irlandeses William Butler Yeats (iniciada em 2009 por meio do convênio entre a USP e a Embaixada da Irlanda no Brasil) e a Associação Brasileira de Estudos Irlandeses (cujo objetivo é divulgar o estudo da cultura irlandesa no Brasil) e ocorre em paralelo com o evento Rethinking Cultural Trauma from Transnational Perspectives, do projeto de pesquisa internacional SPeCTReSS (Social Performances of Cultural Trauma and the Rebuilding of Solid Sovereignties) e do XII Simpósio de Estudos Irlandeses na América do Sul, que será realizado na USP de 22 a 25 de agosto.
Henrique Casimiro
Maria Carolina Gonçalves
Victor Sousa
Vitoria Freitas