CORPO DESPERTO


A mostra CORPO DESPERTO abre a programação do Cinusp em 2018, lançando um olhar sobre a transição da adolescência para a vida adulta, com atenção para o despertar de afetos, desejos, expressões de sexualidade e de gênero experimentados pelos corpos nessa fase delicada e marcante. A curadoria prioriza filmes que não fazem um julgamento moral sobre as descobertas da juventude, mas sim que as observam de perto, com cumplicidade. As 20 obras selecionadas prezam pela diversidade, tanto de estilos cinematográficos quanto de corpos em cena. Diretores fundamentais do cinema moderno europeu, como Pier Paolo Pasolini, Robert Bresson e François Truffaut aparecem ao lado de cineastas contemporâneos, como Sofia Coppola, Larry Clark e Todd Solondz, além de nomes aclamados em festivais internacionais, como Lucrecia Martel, Tsai Ming-Liang e Kim Ki-Duk.

O fio condutor da mostra se encontra na relação muitas vezes delicada e conflituosa, que os jovens são levados a estabelecer com seus corpos nesse momento de transformações explosivas, sofrendo diversas pressões sociais sobre a descoberta de sua sexualidade. Ambiguamente, a repressão convive com a fetichização dos corpos jovens na mídia, o que resulta numa violência psicológica que por vezes descamba para atos de violência física de fato.

Ícone de uma geração, Kids, de Larry Clark, aborda um grupo de jovens envoltos em experimentações com drogas, sexo e violência, causando furor e polêmica quando lançado em 1994, quando a devastação provocada pela   AIDS estava próxima. As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola, investiga sensivelmente a repressão sobre a sexualidade feminina no âmbito familiar e escolar. Palíndromos, de Todd Solondz, mostra a influência de uma cultura hipersexual paradoxalmente repressora sobre a vontade obsessiva de engravidar nutrida por uma garota de 12 anos. A estrutura do filme é curiosa, contando com diversas atrizes no papel da protagonista, o que sugere a fragmentação da personalidade sob as pressões do mundo. Dance Party, USA é representante do chamado mumblecore, surgido nos EUA no começo dos anos 2000 com a popularização dos equipamentos digitais, o que facilitou a realização de jovens cineastas. No filme, o diretor Aaron Katz explora os constrangimentos e afetos desconcertados entre um rapaz e uma garota que se conhecem ao compartilhar o tédio em uma festa, usando uma câmera na mão que confere um tom documental e íntimo à narrativa.

Ainda no contexto do cinema independente norteamericano, Pariah trata de identidade negra, com uma protagonista cujo gênero é difícil fixar. Com efeito, sua existência não cabe em limites definidos, seja como “mulher lésbica” ou “homem trans”, extrapolando terminologias binárias. Moonlight: Sob a Luz do Luar, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2017, também se situa na comunidade afro-americana, deixando ver a dificuldade de se expressar não-heterossexual no contexto escolar ou mesmo fora dele. A violência parece estar sempre à espreita.

No cinema contemporâneo, o termo “cinema corpóreo” é muito utilizado para descrever uma experiência fílmica que prioriza a sensação física em detrimento da identificação psicológica e da progressão narrativa clássica. Um dos grandes representantes dessa estética é o malaio Tsai Ming-Liang, que em Vive l’amour desenvolve seu estilo característico, de longos planos-sequência, com câmera fixa, priorizando espaços vazios e figuras humanas desmotivadas, ao abordar um jovem LGBT envolto por desejos ocultos. O sul-coreano Kim Ki-duk mescla questões de sexualidade com a religião budista em Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera. Faz-se pertinente questionar: até que ponto os preceitos religiosos podem conviver com os desejos do corpo?

A religião ocupa espaço central também em A Menina Santa, filme argentino de Lucrecia Martel, que mostra uma confusa influência cristã sobre o desejo feminino, sendo interessante a postura ativa da personagem adolescente, que acredita ter vocação para salvar a alma de um homem mais velho por meio do sexo. Também da Argentina, XXY é um dos raros filmes a abordar a identidade intersex. Com estrutura melodramática, em que os conflitos individuais se agravam com o peso das normas sociais, o filme é inovador pela temática representativa. Igualmente inovador é o canadense Bruce LaBruce ao expor o desejo de um jovem por homens idosos em Gerontophilia, numa trama que tem estrutura narrativa clássica, diferentemente dos outros filmes do diretor, explícitos e experimentais. Aqui, o choque se dá justamente pelo fato de a temática, incomum no cinema, ser abordada com proximidade, alternando momentos comoventes e cômicos.

The Angelic Conversation, de Derek Jarman, um dos expoentes do cinema queer, revela de forma experimental a fusão possível da cultura clássica com a desconstrução e reapropriação queer, combinando imagens românticas de rapazes com a leitura de sonetos de Shakespeare. Teorema, de Pier Paolo Pasolini, dirige uma crítica feroz à burguesia, aniquilada pela auto-repressão em face dos desejos incontidos despertados por um jovem misterioso. A nouvelle vague francesa conta com um representante menos conhecido que os clássicos do período, As Amizades Particulares, que aborda um romance gay pueril situado num colégio católico de rígidos preceitos morais.

François Truffaut trata do despertar afetivo de seu personagem-alterego Antoine Doinel no curta-metragem Antoine e Colette, mostrando sua primeira paixão, e aprofunda o olhar sobre seu amadurecimento em Beijos Proibidos, no qual o protagonista se vê atirado, mais uma vez, no universo misterioso dos romances inviáveis. Robert Bresson pode ser apontado como um dos principais nomes no mapeamento de uma gênese do cinema corpóreo, uma vez que seus filmes e seus escritos sobre o cinematógrafo colocam o corpo do ator (ou “modelo”) em primeiro plano, despido de psicologizações. Em A Grande Testemunha, seu estilo particular de filmar detalhes de corpos atinge um novo patamar, dando importância não só à figura humana, de uma jovem que age segundo o próprio desejo, mas também de um burro, igualmente ativo apesar das tentativas humanas de dominá-lo. Outro importante diretor francês, Louis Malle desafia tabus familiares em O Sopro do Coração, trazendo um adolescente cujo corpo convalescente é uma metáfora para a própria condição instável dessa fase da vida.

Para além da França, outros cinemas novos ao redor do mundo abordaram a temática da prática sexual pela juventude, como a black wave (nova onda iugoslava), cujo destacado diretor Dusan Makavejev realiza W.R. - Mistérios do Organismo, sobre o psicanalista Willem Reich e sua teoria do combate sexual da juventude, que trata a prática sexual como atitude política. Já no Japão, com a chamada “geração do sol”, precursora da nuberu bagu (nova onda japonesa), há o filme Paixão Juvenil, mostrando vulnerabilidades e ímpetos violentos do despertar masculino.

Como representante brasileiro na mostra, a curadoria traz Lição de Amor, adaptação do romance Amar, Verbo Intransitivo de Mário de Andrade. Ele mostra uma prática peculiar do amadurecimento masculino, corrente no passado, em que famílias de elite contratavam mulheres para realizarem a iniciação sexual de seus filhos, desconsiderando envolvimentos afetivos e encarando o sexo de forma protocolar, como algo que pudesse ser ensinado.

Com a mostra CORPO DESPERTO, o Cinusp convida todo o público a se deixar envolver pelas sensações pungentes do despertar afetivo da juventude. Seja redescobrindo momentos equivalentes da própria vida, seja conhecendo novos conflitos, o envolvimento gerado pelos filmes selecionados vai além da mera identificação racional, cativando o espectador de corpo inteiro.

Boas sessões!

Rena Zoé
Thomás Ceschin