CINEMA E MISANTROPIA
A misantropia – do grego misos (ódio, aversão) e anthropos (ser humano) - consiste no desgosto, aversão ou ódio que um indivíduo sente por outras pessoas. Abrindo a programação de 2019, o CINUSP apresenta Cinema e Misantropia, explorando a forma com que ela é retratada por diferentes filmes, buscando suas origens, suas motivações e seu sentido, tentando assim entender o que nutre a aversão da humanidade por si mesma e as faz agir umas contra as outras. Os filmes desta mostra expõem a misantropia com um olhar desafiador e provocador e convidam o espectador a encarar de frente esse lado sombrio do ser humano.
A mostra reúne obras que produzem resultados inquietantes e perturbadores ao examinar a crueza e, em certos casos, a crueldade encontrada na vida em sociedade. Suas narrativas são marcadas por ironia, sarcasmo, cinismo e sadismo por parte das personagens ou dos próprios diretores. Estas obras, ao experimentar com a forma do cinema e ao explorar conteúdos e temáticas polêmicas ou desconfortáveis, se tornaram controversas desde seus lançamentos, dividindo audiências e fomentando debates sobre a ética e a práxis da representação de atos imorais, muitas vezes gráficos, nas telas; como filmar aquilo que é violento, imoral ou pejorativo, fazendo jus às personagens, aos princípios do próprio realizador e ao espectador?
Frequentemente, a misantropia é abordada com a apresentação de personagens que interagem com pessoas comuns por meio de violência verbal, psicológica, física ou sexual, seja pelo simples desmerecimento do ser humano, seja pelo prazer no sofrimento de outras pessoas. É o caso do sádico e anárquico Alex Delarge em Laranja mecânica, que abusa da “ultraviolência” contra todo tipo de pessoa indiscriminadamente; do serial killer Ben no “mockumentário” belga Aconteceu perto da sua casa, que transforma a raiva que sente pelo ser humano em orgulho ao deixar uma equipe de filmagem registrar seus assassinatos; e do andarilho condenado Jacek em Não matarás, filme do aclamado diretor Krzysztof Kieślowski que examina a pena de morte e questiona se o Estado não seria tão assassino quanto uma pessoa que mata alguém. Estas personagens encontram no ato violento contra outros uma experiência de deleite.
Outros filmes da mostra trazem personagens cujo ódio ou desgosto pelo semelhante influencia suas relações pessoais e os impede de estabelecer laços concretos de afeto e companheirismo. No cru e profundo Nu, o abusivo Johnny busca sentido na sua própria vida e se envolve com mulheres de forma tóxica e irresponsável; Travis Bickle, protagonista de Taxi driver, não consegue estabelecer conexões verdadeiras depois de voltar da guerra, e se vê em um mundo repleto de pessoas desprezíveis; o adolescente em crise Charles em O diabo, provavelmente contempla o suicídio frente ao seu desgosto pelo declínio da sociedade em que vive; já o Açougueiro do sempre polêmico Gaspar Noé em Sozinho contra todos é xenofóbico, machista e homofóbico, e usa o isolamento e a violência como instrumentos para lidar com o medo daquilo que é diferente - um personagem próprio dos nossos tempos.
Em uma vida em sociedade, marcada por interações humanas constantes e inevitáveis, a misantropia também se manifesta de forma coletiva como parte da engrenagem da própria existência em conjunto. Em Felicidade, os habitantes de uma comunidade de Nova Jersey colocam o coletivo em segundo plano e cometem atos desprezíveis em busca de uma felicidade individual. O sucesso de público Relatos selvagens, por outro lado, reúne uma gama de personagens aparentemente banais que são colocados em situações onde seus lados mais animalescos vêm à tona e a raiva represada do dia-a-dia em comunidade se torna a bússola moral. Cronicamente inviável, filme icônico do período conhecido como Retomada do Cinema Brasileiro, retrata de forma expansiva as dinâmicas sociais de um país inteiro, expondo o caos e a alienação do brasileiro como parte integral de sua identidade. Nestes filmes, a misantropia marca a visão de mundo das histórias, e as personagens e narrativas inspiram sentimentos que geram contradições no espectador, estimulando-os a uma interpretação crítica dessa característica do comportamento humano exposto na tela.
Às vezes, essa visão crítica é trabalhada por meio de um universo narrativo em que pessoas comuns passam por experiências traumáticas, seja nas relações sociais ou em eventos isolados. Violência gratuita conta a história de uma família que é mantida em cárcere privado por dois jovens que os manipulam ao longo de uma noite de tortura física e psicológica, em um filme tipicamente preciso e impactante de Michael Haneke. Para sempre Lilya, um dos filmes mais aclamados do cinema sueco moderno, lida com a misantropia no contexto da exploração humana, utilizando o tráfico de pessoas para tratar de uma menina que vive em um sistema que a oprime. Ambos os filmes abordam a misantropia sob a perspectiva das vítimas, e dos efeitos diretos sobre elas.
Outros filmes representam o mundo como um lugar misantrópico de forma alegórica ou distópica em microcosmos idiossincráticos que estimulam certas pessoas a explorar seus anseios mais odiosos, atingindo os extremos da violência física e psicológica. É o caso dos universos de Battle Royale, filme japonês que influenciou o surgimento de um gênero inteiro de jogos eletrônicos, Salò ou os 120 dias de Sodoma, filme radical do consagrado diretor Pier Paolo Pasolini e O animal cordial, terror nacional de Gabriela Almeida Amaral que mostra como a misantropia pode aflorar de forma violenta quando associada a um sentimento de justiçamento e um ambiente propício.
Todos estes filmes levam a uma busca desafiadora e provocante pelo sentido da misantropia na existência humana em suas diversas formas, tanto nos gestos menores do dia-a-dia quanto nos atos mais extremos que um ser humano é capaz de cometer. O CINUSP convida todos a fazerem essa jornada com os filmes, refletindo sobre as questões levantadas por eles – e, se a misantropia é a sua praia, a se divertir.
Boas sessões!