ATOR-AUTOR


Entre 25 de março e 20 de abril, o CINUSP apresenta a mostra ATOR-AUTOR, com 9 protagonistas de variados países e períodos que exploram o papel do ator como elemento formal cinematográfico. Essa visão diferenciada da interpretação vê o ator como elemento de composição da forma dos filmes para além do estudo da atuação em si, e é objeto de estudo dos pesquisadores Pedro Guimarães (UNICAMP) e Christophe Damour (Université de Strasbourg), co-curadores da mostra que estarão aqui para debates sobre o tema nos dias 3 e 10 de abril após a exibição, respectivamente, de Barão Olavo, o horrível e Enigma de uma vida.
O texto a seguir apresenta a base teórica e os atores selecionados para esta mostra. Venha conhecer o trabalho destes intérpretes e descobrir o que eles imprimem de si em cada papel.

Boas sessões!
Equipe CINUSP

A teoria do ator-autor
A teoria do ator-autor inscreve-se na perspectiva da compreensão do trabalho do ator como uma forma estética, que compõe as escolhas de mise-en-scène de uma obra cinematográfica, assim como determinam seu processo de recepção. O corpo do ator, seu programa gestual, os métodos de atuação, a influência da sua persona, são, assim, tornados objetos de análise estética pois configuram-se em nichos de produção de sentido fílmico. É o que defende Nicole Brenez, para quem

“o ator é uma forma cinematográfica da mesma maneira que o enquadramento e a luz; e do mesmo modo que o quadro não pode ser reduzido aos limites de um retângulo e a luz à iluminação das coisas, o ator não pode ser reduzido a um significante do qual o personagem seria o significado. (BRENEZ, 1992-1993, p. 89)

Entender o ator como forma cinematográfica pressupõe ultrapassar o discurso crítico e seus meros juízos de valor sobre a veracidade de uma interpretação ou a qualidade da mimesis. Buscar momentos de autoria no trabalho dos atores significa analisar esteticamente a encarnação concreta de um personagem e os efeitos que daí advêm: a inscrição do seus métodos de interpretação numa historiografia das formas fornecidas pelo modelo teatral, as referências plásticas dessa encarnação, a qualificação e a quantificação do programa gestual do ator, as condições simbólicas e práticas da construção de um personagem, etc.

A teoria do ator-autor foi forjada pelo pesquisador, crítico e biógrafo estadunidense Patrick McGilligan em 1975, no seu livro Cagney, the actor as auteur, obra que mescla análises estéticas e biográficas da carreira do ator James Cagney. Nessa análise, McGilligan propõe a fórmula the actor as auteur (ator como autor) e não é por acaso que ele utiliza o termo auteur no seu original francês, já que essa terminologia remete diretamente ao pensamento da política dos autores, levantada pela revista francesa Cahiers du Cinéma nos anos 1950. Assim, como política dos autores, a teoria do ator-autor busca ver, no trabalho dos atores, constantes formais e temáticas que aparecem ao longo de toda a sua carreira. Essas repetições de formas e temas seriam capazes de se tornar instâncias autorais legítimas que pudessem determinar a concepção formal e temática não só de um personagem (o que bastaria para qualificar o ator de criador), mas também, num sentido mais amplo, de um plano, de uma sequência ou de um filme, no geral.

A teoria do ator-autor foi atualizada por Luc Moullet em A política dos atores (1993). Nesse texto, Moullet analisa o que ele chama de “figuras ou orientações essenciais de postura e gestos” que o ator vai inventar e repetir à exaustão ao longo de toda sua carreira. Moullet analisa quatro atores do cinema clássico: Cary Grant, John Wayne, James Stewart e Cary Cooper, ficando ainda nas águas do cinema clássico, transparente e de atuação majoritariamente dramática.

Outra reutilização, mais recente, está ligada ao GRAC, Grupo de Pesquisa sobre o Ator de Cinema, da Universidade Paris 1 e da revista Positif, bastante ancorado no modelo de análise de Moullet. As pesquisas do GRAC tem o mérito de alargar o corpus de atores analisados a mulheres (o livro de Michel Cieutat e Christian Viviani sobre Audrey Hepburn), atores do cinema contemporâneo (Christophe Damour sobre Al Pacino) e a atores europeus, que trabalham fora do sistema dos grandes estúdios americanos (Gwénaëlle Le Gras sobre Catherine Deneuve).

Os filmes escolhidos para essa mostra dão um panorama expandido de como atores e atrizes de diferentes países podem manifestar sua autoria. Burt Lancaster e Montgomery Clift pertencem ao universo inicial que acolheu as teorias de McGilligan e Moullet sobre o ator-autor: o cinema americano clássico. Mas enquanto Lancaster desenvolveu sua persona de atleta incansável e virilidade a toda prova, um bom selvagem na esteira de Rock Hudson, como Hollywood soube bem construir, Clift foi um dos primeiros atores a quem foi permitido demonstrar fraqueza e vulnerabilidade, abrindo espaço para o aparecimento de atores modernos menos idealizados. No lado feminino, Meryl Streep demonstra ser consenso entre adeptos do viés naturalista ou do jogo mais desconstruído, botando a prova os limites da teoria do ator-autor justamente pelo fato de se modificar tanto de um papel a outro – coisa que outros de seus colegas como Robert de Niro ou Daniel Day Lewis também faz. O que resta da autoria do ator na possibilidade camaleônica de ele se “transformar” em diferentes personagens.

Indo para os exemplos do cinema europeu, onde a teoria do ator-autor talvez não tenha sido tão frutífera assim – a pátria da política dos autores onde o cineasta é o demiurgo criador, não admitiria tal sacrilégio – Isabelle Huppert se destaca. Dona de um jogo minimalista e um registro de jogo que alterna o naturalista com o comentário sobre a atuação em seus gestos e posturas, Huppert construiu persona facilmente identificável e desejável por diretores de diferentes estilos. Em outra época, Anna Magnani impôs seu registro vulcânico a todos os papéis, tendo sido identificada tanto à atuação virgem do neorrealismo quanto ao mais codificado jogo melodramático. Já Klaus Kinski estabeleceu relações fusionais com Werner Herzog e determinou grandes rumos da carreira do autor, sendo assim um ator cujo registro de jogo e persona marcaram decisivamente a obra de um cineasta. Do Japão, nos vem o exemplo de Kinuyo Tanaka, que fez algo parecido com a obra de Kenji Mizoguchi. Tanaka era atriz de todas as vertentes dramáticas emocionais: do drama romântico contido ao mais escandaloso e flamejante melodrama, não por acaso chamada de “a Anna Magnani” japonesa.

Dentre exemplos brasileiros, Helena Ignez se destaca como atriz criadora de um jogo único no mundo: entre o debochado, o desconstruído, o citacional, é seguramente a grande contribuição brasileira para o jogo do ator de cinema. Tarcísio Meira encerra a lista com dois filmes que subvertem o jogo e a persona do galã televisivo, um pelo viés temático, na pele do personagem de homossexual assassino, outro pelo viés formal, como o ator cujo corpo encarna ritornelos glauberianos com molho de cinema marginal. Ambos os filmes souberam usar a persona do ator num contraemprego, bem longe das suas aparições como galã das novelas de televisão.

    Pedro Guimarães, co-curador da mostra