NOSSOS MELHORES AMIGOS
A mostra Nossos melhores amigos explora a maneira como o cinema representa os laços de amizade entre pessoas e animais, reunindo filmes de diferentes origens e estilos que realçam a profundidade, a beleza e a complexidade dessas relações, revelando o que nos une a esses seres de natureza tão distinta da nossa: animais domésticos como cães, gatos, ratos e pássaros, animais de fazenda como cavalos, porcos, vacas e até camelos, e animais selvagens como o falcão e a água-viva.
Desde os primórdios da vida humana, as pessoas viveram em contato direto com os animais, primeiramente enquanto caça e caçador e, em seguida, de forma mais próxima, em relações de domesticação e companhia, proteção ou trabalho. A gata que andava sozinha, animação da diretora russa Ideya Garanina, faz um relato mitológico dos primeiros contatos sociais entre humanos e bichos, mostrando como o papel dos animais na vida em sociedade foi se tornando cada vez mais complexo e traçando uma mirabolante visão da origem do mundo.
Há uma natureza ritualística nas relações entre pessoas e animais. Gatos, da turca Ceyda Torun, mostra moradores de Istambul que constroem personalidades e narrativas para os gatos de rua, revelando sem querer um pouco sobre si mesmos e sobre a cidade onde moram. No docudrama Camelos também choram, um grupo nômade da Mongólia realiza um elaborado ritual de conciliação entre um camelo fêmea e um filhote rejeitado pela mãe após o parto. Outro filme que demonstra esse hábito ritualístico é A canção do cavalo, poema visual raro de Akira Kurosawa feito para a televisão, no qual uma criança e seu avô narram e acompanham o nascimento e crescimento de um cavalo de corrida, apresentando toda uma história dos cavalos aos olhos e cuidados humanos. Esses filmes realçam o papel folclórico, místico e muitas vezes antropomorfizado que os bichos exercem na cultura humana, e também como essas relações se baseiam em nossas próprias visões de mundo.
Além do caráter ritualístico dessas amizades, encontra-se muitas vezes nesses vínculos um escape da realidade, sem as complicações, os transtornos e as demandas das relações humanas. É o caso, por exemplo, de Futuro brilhante, filme de Kiyoshi Kurosawa no qual a obsessão de um jovem por uma água-viva reflete sua busca de um significado para a vida em meio a crises existenciais sintomáticas da sociedade japonesa da virada do século XXI. Mais próximo da fantasia e do imaginário infantil está O corcel negro, tour de force deslumbrante da Nova Hollywood no qual a realidade inteira de um menino se torna o seu cavalo, com o qual sobrevive a um naufrágio e com quem disputa a corrida do século.
Kes, marco do realismo social britânico de Ken Loach, conta a história de um adolescente que encontra no falcão que decide treinar uma saída para o bullying e a opressão social que sofre no dia-a-dia. O clássico cult de terror Ben - o rato assassino também se constrói a partir da abstração da realidade, quando um garoto encontra na amizade com um rato uma escapatória para a falta de atenção que tem em casa. Já para Robert Stroud em O homem de Alcatraz, inspirado na vida do polêmico prisioneiro americano, os pássaros que preenchem o espaço de sua cela e a quem ele dedica inúmeros estudos tornam-se sua única razão de viver, além de um resquício de convivência no cárcere.
Alguns realizadores usam o cinema para criticar a exploração e o abuso de animais, em prol de relações menos hierarquizadas e mais respeitosas. Em Babe, o porquinho atrapalhado, a divisão entre animais de fazenda e animais domésticos é contestada na figura do jovem porco que decide se tornar um pastor de ovelhas. Deus branco, do húngaro Kornél Mundruczó, critica o tratamento precário dos animais em casa, nas ruas e nos abrigos com a história de uma menina que busca o cachorro que foi forçada a abandonar e que, após ser maltratado, inspira uma rebelião; o filme aborda de forma violenta e provocativa a crueldade do ser humano em posições de autoridade, e os limites da superioridade das pessoas sobre os bichos. Couro de gato, curta de Joaquim Pedro de Andrade, revela na breve amizade entre um menino e um gato a dificuldade de se cuidar de um animal destinado à exploração, cujas necessidades entram em conflito com as do menino.
Outros cineastas se destacam por sua abordagem poética e pouco convencional, ao apresentar a importância dos bichos em nossas vidas por meio da perda desses animais, abordando o impacto deles nas vidas das pessoas e as consequências de sua ausência. A vaca, filme seminal da Nova Onda Iraniana dos anos 60 e 70, retrata a transformação psicológica de um homem nas mãos de sua comunidade quando morre sua amada vaca, a única do vilarejo. Já no curta russo de animação também intitulado A vaca, de Aleksandr Petrov, uma criança recorda momentos de sua infância no campo e a dura vida da vaca da família.
Coração de cachorro toma um caminho diferente: o filme-ensaio da artista multimídia Laurie Anderson parte do recente falecimento de sua cachorrinha para introduzir uma reflexão sobre os fenômenos da vida e da morte, dos convívios que moldam nossas experiências e da passagem do tempo. Portões do paraíso aborda questões similares, mas de forma mais literal: a partir das histórias de dois cemitérios para animais domésticos, o documentário de Errol Morris pondera sobre o ser humano e os seus mais puros sentimentos de afeto e pertencimento relacionados a algo maior e ao próprio sentido da vida.
Os filmes da mostra apontam, de diferentes maneiras, para os vínculos puros ou ambíguos, profundos ou reservados, relutantes ou incondicionais que estabelecemos com os animais e, em especial, para os frutos dessas amizades em todas as vidas envolvidas. Entender nossas relações com os animais implica reconhecer nossa inevitável conexão com a natureza e com nosso mundo, ao perceber que não estamos sozinhos. Ao tratar dessas amizades, esses filmes apresentam o ser humano em convívio, dando e recebendo de acordo com as condições do momento e na coletividade. O CINUSP convida a todos a refletirem sobre as relações que marcam nossas vidas e a enxergarem os animais, mais uma vez, como nossos melhores amigos.
Boas sessões!
Equipe CINUSP