HISTÓRIAS DE COZINHA


A comida é um importante elemento da cultura de qualquer grupo social: ela envolve cheiros, sabores, tradições, o convívio e a partilha à mesa. A forma como cozinhamos, comemos e interagimos com os alimentos desperta prazeres, sentimentos e sensações que, no cinema, adquirem ainda mais força por provocar uma experiência sensorial de aguçar o apetite. Tendo em vista a centralidade que a comida ocupa na sociedade, o CINUSP promove entre os dias 09 e 22 de dezembro HISTÓRIAS DE COZINHA, uma mostra de dar água na boca contendo títulos que abordam a relação cultural e afetiva das pessoas com a alimentação.

Nos filmes selecionados, os personagens lidam com questões culturais, religiosas, de classe, amorosas e sexuais por intermédio da comida, revelando a inerência do alimento à própria vivência social. A comida funciona, muitas vezes, como metáfora ou metonímia, porque é transposta para a narrativa de maneira primordial, não se limitando ao ato de simplesmente alimentar ou dar sustância. É um elemento que conta histórias – tal como uma reunião de família ou amigos ao redor da mesa – e que expressa sentimentos e afetos, nunca se desvinculando de seu contexto cultural. E é esse pertencimento a uma tradição e a uma cultura que amplifica a humanidade dos personagens vistos em tela, dando um aspecto universal às suas histórias – mesmo que os filmes se passem em lugares distantes, com alimentos absolutamente estrangeiros.

É o caso do japonês Tampopo: Os brutos também comem spaghetti, que oferece uma apetitosa referência ao gênero western, mesclando-o com a comédia. À época do lançamento do filme, a comida japonesa ainda estava se popularizando ao redor do mundo, mas isso não foi um empecilho para o tremendo sucesso de público que a obra atingiria fora do Japão. O filme conta a história da personagem-título, que busca incessantemente a receita para um lámen perfeito.  Ao mesmo tempo, pequenas vinhetas mostram diferentes maneiras de se relacionar com o alimento – desde suas funções sociais até mesmo seus possíveis usos eróticos. O erotismo presente no britânico O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante também é materializado na comida, assim como a violência e o consumo excessivo – numa parábola que possui reflexos da Inglaterra thatcheriana.  Assim como outros trabalhos de Peter Greenaway, o filme é provocador e ousado, promovendo referências às artes plásticas e ao teatro. 

Similarmente, é a cozinha responsável por transmitir a sensualidade, os desejos e as dores de Tita, protagonista do realismo fantástico Como água para chocolate. O filme, baseado no livro de Laura Esquivel – que também assina o roteiro –, é uma crítica às tradições opressoras sobre as mulheres, e apresenta a comida como uma das armas de combate e quebra desses costumes. 

O drama japonês Sabor da vida também traz o alimento – mais especificamente bolinhos dorayakis recheados de an, uma pasta de feijão doce – como uma metáfora para a liberdade e a luta contra a estigmatização social. Tokue, uma senhora bastante idosa e otimista, lida com o preconceito daqueles que dispensam os bolinhos preparados pelas suas mãos mágicas porém deformadas por uma doença que a acometeu no passado. Assim como no filme de Kawase, no indiano Lunchbox a comida é uma forma de temperar a vida insossa dos protagonistas, que começam a trocar cartas junto com marmitas deliciosas.

A religião é outra esfera da vida social que se mistura à alimentação. No melodrama israelense O confeiteiro, o kosher – norma judaica que dita o que se pode ou não comer e como a comida deve ser preparada – é um empecilho para Thomas, cozinheiro alemão que viaja até Israel buscando se aproximar do passado de seu falecido amante Oren. Apesar de não estar de acordo com o kosher e sofrer certa desaprovação, seus biscoitos e bolos acabam conquistando os clientes e incitam a paixão de Anat, viúva de Oren, criando um triângulo amoroso inesperado. Já no clássico A festa de Babette, filme dinamarquês vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a comida é uma forma de prazer material que coloca em risco os ensinamentos cristãos de uma pequena vila conservadora.

Para adocicar a mostra, duas premiadas animações são exibidas em conjunto. Bao, curta-metragem em que aspecto compartilhado de uma refeição invoca memórias numa mãe que sofre com a partida do filho, e Ratatouille, que mostra que qualquer um pode cozinhar e se envolver com a comida – até mesmo um ratinho criado no esgoto.

Fechando o cardápio, Garlic is as good as ten mothers aborda, de forma bastante singular, um dos condimentos mais utilizados da história da humanidade: o alho, que coleciona uma legião de fãs devotos por seus poderes paliativos, medicinais e místicos.

Propondo um olhar mais atencioso à comida, tão central na vida de todos os seres humanos e essencial à cultura de todas as sociedades, além de buscar explorar a potência do food film – que se populariza cada vez mais graças às suas possibilidades sensoriais –, o CINUSP convida todos a degustarem as deliciosas obras presentes na mostra. Mas atenção: não venha de barriga vazia.

    Boas sessões!