MARES POR VIR


No reflexo das águas salgadas do mar, um sem-fim de imagens esbarram no som perpétuo das ondas. Ali, trajetórias e contemplações submergem num único corpo. É pensando nessa variedade de experiências que o CINUSP apresenta a mostra MARES POR VIR. Os vários filmes da mostra nos levarão por uma investigação sobre a presença e os sentidos do oceano no cinema. Partindo no dia 22 de março e atracando em 18 de abril, nossa programação continua de forma online e com navegação livre.

Nossa seleção de filmes procura entender o oceano como esse espaço de movimento contínuo. Seja no trabalho diário de quem sobrevive do mar, nas caravelas invasoras ou nas grandes festividades dedicadas à Yemanjá, o mar oferece um caminho a ser desbravado. O CINUSP aposta na capacidade das imagens e dos sons oceânicos de trazerem novos ares para nosso contexto de isolamento social. Mantendo o formato de nossa última mostra, seguiremos exibindo curta-metragens pelo nosso canal do Youtube. Nossa programação também conta com atividades que exploram temas correlatos aos filmes, como debates com convidados, textos e o podcast Cinusp em casa. É trazendo a imensidão do mar e sua renovação em cada onda que procuramos continuar nossas atividades de 2021!

Num movimento transatlântico de relação entre suas várias margens, como nos ensina a historiadora Beatriz Nascimento, é fundada a própria ideia de Brasil. Pensando nesse trânsito, podemos enxergar o mar como o espaço que tanto separa quanto une seus litorais. Foi através dele que milhões de africanos escravizados foram raptados por europeus de suas comunidades originais. A complexidade dessas relações é trabalhada por Aline Motta no filme Se o mar tivesse varandas  — obra que se debruça sobre a reconexão do Brasil com o continente africano e suas raízes afro-diaspóricas. “Se o mar tivesse varandas (...) o exílio seria uma passarela, ao qual todos retornariam concretamente”, diz Aline em seu filme. Empenhado em criar essas pontes de um território a outro, em um só corte, o filme nos conduz por entre as águas ainda marcadas por nosso passado colonial.

De frente para o mar, podemos imaginar do outro lado Angola, Congo, África do Sul ou Namíbia. Podemos enxergar também, no desfocar dos olhos, algo abstrato que sequer existe. Olhando para essa infinidade de possibilidades que se abrem diante de nós, selecionamos filmes interessados na contemplação da água e dos deslocamentos marítimos. Em Cassis, o movimento dos barcos enfatiza o valor desses percursos, incitando nosso imaginar: para onde se vai e de onde se volta? Dialogando com esse fluxo, Reino do Silêncio desenha na superfície da água uma espiral, usando para isso somente o deslocamento de uma embarcação. É também através da observação estática que vemos o mar em Raio verde, filmado no litoral de Madagascar. Com uma narração sensível sobre um fenômeno natural raro, gravada anos após a obra original, Tacita Dean nos acompanha por uma experiência contemplativa que, fitando o horizonte, cria uma reflexão sobre o próprio ato observativo, num gesto de esperança.

Abrindo o mar com suas proas, temos os barcos pesqueiros, suas linhas, redes e trajetórias. Adaptando o clássico livro de Ernest Hemingway para uma animação inteiramente feita com aquarela, O velho e o mar nos cativa não só pela delicadeza, mas também pela beleza estonteante dos traços pincelados. Tratando do trabalho diário de diversas pessoas que arrancam seu sustento do mar, A temporada do peixe espada registra uma prática hoje já extinta de pesca, preservando por meio da montagem a agilidade e a tensão envolvidas em uma antiga tradição siciliana.

O encanto por animais marítimos, assim como sua caça e consumo, são práticas que remetem ao início da história humana. Chris Marker, um dos grandes nomes do documentário ensaístico, discorre sobre nossa ligação com um desses habitantes oceânicos em seu filme Viva a baleia, co-dirigido com Mario Ruspoli. Esse encontro, entre o homem e o maior dos mamíferos, serve como catalisador para uma reflexão geral sobre a sociedade moderna e sua relação com a natureza.

Ainda dentro do registro documental, Ácera, ou a dança das bruxas nos conta sobre o ciclo de vida das Acera bullata, esse estranho molusco que dança com seu capuz durante o ritual de acasalamento. O cinema de Jean Painlevé, nesse caso em parceria com Geneviève Hamon, nos apresenta uma conciliação entre o rigor da descrição científica e a sensibilidade do olhar artístico, propiciando um estudo da vida e da beleza desses seres.

O mar também é a morada de muitos mistérios, lendas e mitos. Mergulhando mais fundo nesse universo, a animação Entre as ondas negras explora uma antiga lenda russa onde mulheres podem também ser focas, habitantes de um infinito oceano escuro. Justamente por se apresentar ausente de forma sólida, parece haver na figura marítima um convite à experimentação estética. Esse aspecto também se faz presente em outra animação que compõe a mostra: em Egun, a religiosidade afro-brasileira, a poesia e o desenho se misturam no balançar das ondas do mar, reforçando a presença enfática de Yemanjá na vida de milhares de pescadores que a têm como protetora dos maus tempos.

Aliás, os perigos enfrentados por aqueles que vivem do mar também apavoram a jovem noiva de um pescador em O domador de tempestades, obra rara do grande Jean Epstein. Com uma poética delicada e poderosa, as imagens do mar revolto na bola de cristal desse bruxo dos mares nos comovem pelo transe que exercem. Em Oaxaca Tohoku, a ameaça de um tsunami sobre a costa do México provoca comoção no cotidiano dos habitantes de Oaxaca. A turbulência também se faz presente em Sem coração, curta brasileiro de Nara Normande e Tião, que nos embala em uma história que imagina o amor junto ao mar, no ritmo de uma maré turbulenta.

Esperamos que essas constelações possam ser boas guias por esse mar, que infinitamente se abre e nos revela novas águas; praias antes nunca visitadas, essas também à beira de outros mares nunca antes navegados e nem sequer inventados. São todos, afinal, ainda mares por vir.