INSCREVENDO PASSADOS NO HORIZONTE


A História é um território em disputa constante e o poder de narrar é também o poder de valorizar determinadas vivências e silenciar outras tantas. Há séculos, esse poder vem sendo monopolizado pelos grupos dominantes, que tentam apagar a memória e, por vezes, a própria identidade de grupos e povos a ele submetidos. Nesse contexto, produzir história a partir de uma mirada minoritária torna-se um exercício de denúncia e existência. Fazendo eco a essa polifonia de vozes invisibilizadas, o CINUSP apresenta a mostra INSCREVENDO PASSADOS NO HORIZONTE,  composta de filmes que enunciam, de forma inventiva, alternativas às perspectivas hegemônicas. Entre os dias 19 de abril e 16 de maio apresentamos cinemas que propõem contra-narrativas, capazes de contestar a tradicional “história dos vencedores”. Com uma programação que contará com bate-papos, entrevistas e um podcast com realizadoras/es, convidamos o público a fabular outros horizontes possíveis a partir de olhares críticos sobre o passado.

Os filmes selecionados para essa mostra demonstram que as memórias produzidas por pessoas negras, exiladas, imigrantes, LGBTQIA+, mulheres e povos indígenas funcionam como mecanismos que rompem o silenciamento. Ao projetar suas perspectivas sobre o passado, disputam o imaginário coletivo dominante. Essas produções, no entanto, se propõem a realizar a difícil tarefa de narrar a partir da escassez de registros. Como produzir histórias que estão crivadas de apagamentos e lacunas? A fabulação se mostra, então, uma estratégia fundamental para preencher esses espaços e imaginar determinados eventos não contemplados pelo discurso oficial. Fabular é uma forma de reivindicar um passado, questionar o presente e projetar futuros.

Quando falamos de História, é quase inevitável pensar na investigação de documentos oficiais. No entanto, diante da falta dessa documentação, a pesquisa histórica tradicional não é capaz de explicar alguns fatos, sendo necessário se ater aos vestígios e adotar uma prática especulativa para entender aquilo que foi deixado de lado. Em História e Memória: para Akiko e Takashige, a diretora nipo-estadunidense Rea Tajiri se debruça sobre o trauma familiar marcado por um acontecimento quase esquecido da história dos Estados Unidos: os campos de concentração para japoneses e seus descendentes durante a II Guerra Mundial. As memórias de seus pais e avós se tornam praticamente os únicos registros de uma história real de horror.  

É também através das memórias e registros familiares que se constrói Inconfissões, filme no qual a realizadora Ana Galizia reúne fotos, vídeos e cartas do tio que nunca conheceu. Aqui, os relatos extremamente íntimos de um jovem que vivenciava sua sexualidade longe do julgamento familiar, nas décadas de 1970 e 1980, ganham dimensões coletivas em um retrato singular da vida da comunidade gay, pouco antes da epidemia da AIDS, que levou ele, e outras milhares de pessoas LGBTQIA+, à morte precocemente. 

Existem ainda os arquivos que estão inscritos no próprio espaço: nas construções e nas paisagens. Nesse sentido, o curta-metragem Seu pai nasceu com 100 anos de idade, assim como a Nakba revela que as próprias ruas e prédios de uma cidade podem ser as testemunhas vivas de histórias apagadas. No filme, uma senhora palestina retorna à sua terra natal, após décadas de exílio, através do Google Maps e busca por seu filho ainda criança, misturando passado e presente em uma tentativa de achar vestígios da cidade onde viveu um dia. Também marcado pelo retorno à terra natal e pela visita às paisagens de sua memória, o média-metragem marroquino A febre relata, de forma experimental, a trajetória de vida de uma mulher exilada. A personagem principal é uma menina, cuja voz nunca ouvimos, que nos conduz por essa experiência ensaística e sensorial, onde as recordações de seus familiares, a luta pela independência do Marrocos e o retorno do exílio de uma militante política são evocados através das paisagens típicas do país: seus centro urbanos, campos e ruínas.

A ausência de imagens que deem conta da complexidade histórica é outro tema recorrente nestes filmes e alguns deles potencializam formas coletivas de lidar com o trauma do “esquecimento”. Quando a ausência está marcada no próprio corpo de um povo, o processo de autodescoberta, a partir dele, torna-se uma forma de se reconectar com as memórias perdidas. É disso que trata o filme NoirBLUE: deslocamentos de uma dança. A performer e realizadora, Ana Pi, propõe um mergulho na experiência afro-diaspórica através da performatividade, apresentando o  corpo negro como aquele que vivencia simultaneamente tempos distintos. Em meio a movimentos de dança e descobertas de palavras reminiscentes das línguas africanas no português, ela relata sua visita ao continente africano, onde vislumbra um futuro negro de liberdade plena. Recorrendo à sua memória ancestral, Ana celebra os que ainda estão por vir: “a gente está no futuro e no futuro nós falamos com as nossas próprias bocas. E no futuro a roda é ainda maior. E no futuro há espaço para coisas que a gente nem imaginou”.

Esse desejo por um horizonte de possibilidades inimagináveis também está presente em No futuro eles comiam na melhor porcelana, uma ficção científica ambientada no contexto de luta pela sobrevivência da Palestina. Em uma dura crítica ao genodícidio palestino, a realizadora Larissa Sansour, junto a Søren Lind, propõe uma disputa da narrativa oficial por meio da arqueologia. Nessa fabulação, enterram porcelanas típicas de sua cultura para que, no futuro, seja comprovada a existência de seu povo naquele território. O filme, em sua estética absurda, materializa o terror da distopia em que vive a comunidade palestina, projetando a libertação da dominação israelense por meio da uma subversão científica.

Utilizando-se também da ficção científica para subverter traumas históricos, Preces precipitadas de um lugar sagrado que não existe mais se aproxima do afrofuturismo para apresentar personagens que viajam no tempo com a estratégia de alterar os acontecimentos históricos. Ao interferir no passado colonial de escravidão, os jovens de Fortaleza buscam desmontar o monopólio do futuro para enfim contar suas próprias histórias. Em um gesto similar de recriar o passado, Afronautas busca inspiração em fatos reais pouco conhecidos: a existência de um programa espacial na Zâmbia, durante os anos 60, que almejava chegar na lua antes dos Estados Unidos. Neste curta-metragem afrofuturista, cheio de imagens que unem tecnologia e precariedade, abre-se a possibilidade de um outro desfecho para a história. Imaginando o êxito do projeto, criam-se imagens de uma jovem africana chegando à lua e vencendo a “corrida espacial”.

Enquanto há obras que, no exercício de questionar a História, imaginam horizontes “compossíveis”, existem outras que empregam a inversão de papéis para denunciar os apagamentos e a criação de estereótipos violentos. Thinya revisita os relatos de um colonizador europeu sobre a “descoberta” de povos indígenas no território que hoje se chama Brasil. Recorrendo à ironia crítica, esses relatos são apresentados em yatê, idioma tradicional do povo Fulni-ô, e sobrepostos às imagens de europeus em situações cotidianas. Esse procedimento nos faz questionar o que teria acontecido se os povos originários tivessem “descoberto” os europeus. Em um caminho similar, mas de forma escancaradamente debochada, o pseudodocumentário australiano BabaKiueria nos apresenta uma sociedade dominada pelos aborígenes (povos originários da Austrália), na qual os brancos são tratados com racismo e marginalização. Em tons de jornalismo antropológico, o filme evidencia o absurdo e o ridículo da dominação eurocêntrica das narrativas, ao torná-la alvo de seu próprio regime de exclusão.

Os filmes selecionados para esta mostra revelam a riqueza inventiva e a sofisticação formal de produções que só se tornaram possíveis graças à emergência e protagonismo de vozes que, por muito tempo, foram impedidas de difundir suas próprias narrativas. O CINUSP convida o público a testemunhar e, por quê não, participar dessa luta contra a invisibilização, que busca resgatar e ressignificar Histórias. Nesse processo, a imaginação, a criatividade e o cinema se revelam armas poderosas de reconstrução de memórias e da própria História.