IRREVERENTE EXTRAVAGÂNCIA


O uso do exagero e da afetação é uma forma que muitos rebeldes da arte encontraram para desafiar a noção, tida como irredutível, de “bom gosto” na arte. Obras que permeiam o cômico, o absurdo e o artificial podem ser associadas a uma sensibilidade “camp”, termo conceituado por Susan Sontag no artigo "Notes on Camp" (1964). O fenômeno camp se apresenta como uma ode à frivolidade, propondo-se a reimaginar a realidade como algo bizarro, cômico, belo e, ao mesmo tempo, precário. Em um breve panorama do uso da proposta camp no cinema, o CINUSP apresenta a mostra IRREVERENTE EXTRAVAGÂNCIA, entre os dias 17 de maio e 11 de junho. Nossa programação online conta com uma seleção de  filmes que fazem jus ao espírito da extravagância e do absurdo, além de um podcast e entrevistas com realizadores. 

Os filmes que integram a mostra representam um misto de paródia e homenagem a várias manifestações audiovisuais e, à sua maneira peculiar, provam que é possível ser chic com baixo orçamento. Mesmo que estruturados através da hipérbole estética e temática do grotesco, as obras atingem uma certa verossimilhança própria, tornando visíveis os absurdos normalizados do cotidiano. Por isso, por trás da aparente frivolidade, apresenta-se uma face crítica que põe em questão gênero, sexualidade e nacionalismo, ao mesmo tempo em que evidencia a  existência de mundos dissidentes e provocativos. 

As manifestações do que é denominado camp podem ser encontradas na agitação cultural dentro da comunidade LGBT nos Estados Unidos, desde os anos 60 até hoje. Como representante finíssimo dessa tradição, a mostra traz dois filmes do diretor Kenneth Anger, precursor da estética do exagero em chave mais experimental, mistura sem medo plasticidade e sexualidade em sua obra. Kustomm kar kommandos oferece um olhar bastante dedicado e lascivo a um jovem loiro que lustra seu carro, passando a impressão de que muitos espectadores poderiam passar horas entretidos com os gestos sugestivos do modelo. Já em Scorpio rising, Anger dialoga com o movimento da arte pop e banaliza símbolos sagrados e perversos numa narrativa repleta de conotação sexual e referências à cena noturna LGBT, misturando fetichismo, ocultismo, homoerotismo, religião e até nazismo. A performance drag também é intrínseca ao camp, e como representante trazemos a sessão dupla especial do cômico e irreverente Tom Rubnitz: Strawberry shortcut e Pickle surprise, que juntos compõem um especial culinário cheio de duplos sentidos sob o comando de drag queens

Algumas realidades já são tão absurdas, que a simples exacerbação dessa característica é capaz de escancará-la. Vemos isso acontecer na desconstrução da identidade nacional brasileira proposta por A Cristalização de Brasília. Esse filme, que faz parte da pesquisa do artista visual Guerreiro do Divino Amor, envolve a utilização de colagens precárias, a mistura de referências estéticas e uma forma que lembra a de vídeos institucionais, através da qual vemos uma apresentação didática e surreal do processo sociopolítico de construção da capital federal. A pompa institucional revela a articulação profunda em torno de uma história de desigualdade escandalosa. A estética camp aguça o que é absurdo nas imagens, o exagero e o não-natural compartilham uma semelhança com o espetáculo terrível da capital da nação. A sátira política também está presente em Soberba, filme alemão de Ulrike Ottinger, que emprega alegorias para parodiar os moldes de imagens nacionalistas, com um desfile de personalidades excêntricas que trajam figurinos mirabolantes, parecendo inadequadas para qualquer ocasião. Fantasias animalescas, tules coloridos e maquiagens surreais refletem o excesso de vaidade e ostentação dos ritos militares, e demonstram uma hierarquia inadequada à democracia.

O melodrama é solo fértil para o excesso e um bom exemplo disso é o Trailer para amantes do proibido, filme pouco conhecido do renomado diretor Pedro Almodóvar, conhecido por sua vasta produção altamente extravagante. Nesta narrativa, tudo o que poderia acontecer de ruim com alguém acontece com um homem cruel e mesquinho, após abandonar sua esposa e filhos para viver com uma amante. Recheadas de números musicais grandiosos e figurinos exagerados, as jornadas dessas mulheres são marcadas por suas vinganças em grande estilo, diretamente influenciadas pelas reviravoltas dramáticas das telenovelas. 

A vingança é recorrente nas narrativas melodramáticas, mas ninguém é mais vingativa do que a protagonista de Leona assassina vingativa 4: atrack em Paris, filme que desafia todos os parâmetros do “bom cinema” e conta com a presença marcante da travesti paraense Leona Vingativa, que alcançou visibilidade nacional a partir dessa websérie, na qual enfrenta sua arquirrival: a Aleijada Hipócrita. Produzido após um hiato de oito anos, este é o episódio final de uma saga de filmes caseiros lançados na internet nos início dos anos 2000, que parodiam as tramas novelescas, com referência musical direta à telenovela mexicana A Usurpadora (1998) e levando a precariedade à sério, como uma precursora dos memes que hoje dominam as redes sociais. 

Já no musical 3 exemplos de mim como rainha, da diretora estadunidense Anna Biller, os padrões femininos são exacerbados e criticados através de uma estética que parodia as fórmulas musicais clássicas de Hollywood, aproximando-se da cafonice sem qualquer pudor. A proposta de colocar-se como "soberana" extrapola a narrativa, já que Biller acumula as funções de diretora e protagonista de seu filme, interpretando a rainha do título. Em uma fórmula parecida, Folguedos no firmamento apresenta figurinos que parecem fantasias e personagens caricaturais. Nele, o deboche recai sobre a ideia fixa do que se espera de uma mulher, quando a protagonista do curta se espelha na emancipação de Ada Rogato, a primeira aviadora do Brasil, para renovar seu estilo e sua própria postura no mundo. Ambos os filmes foram dirigidos por mulheres, em contextos adversos, e questionam o lugar que elas ocupam nas respectivas indústrias cinematográficas em que estão inseridas, sem aliviar na sátira, nas músicas piegas e nas situações excessivas que propõem.

Ainda que o cômico tenha um papel importante no camp, há outros caminhos a serem explorados pelo estilo, como faz Phyllis, obra da artista visual nigeriana Zina Saro-Wiwa. A decadência e a solidão são retratadas no exagero dramático e sombrio do filme, que pertence ao movimento "Alt-Nollywood", termo criado pela própria diretora para designar filmes alternativos que fogem da hegemonia da produção de Nollywood (indústria cinematográfica da Nigéria). O filme traz cenas inquietantes de uma jovem viciada em assistir dramas na televisão enquanto troca de perucas coloridas para imitar os personagens, sem deixar de comover com a beleza artificial dos elementos que compõem seu universo.

Dirigir o olhar para a plasticidade dos filmes que se revelam como camp permite uma reflexão sobre a forma de diferentes gêneros audiovisuais, desde o vídeo institucional até o melodrama mais sofisticado, passando por programas de culinária e filmes de Hollywood. Se o cinema surgiu como uma arte de atrações para entreter o público em feiras, o que esse legado representa para as narrativas? No território majoritariamente dominado pelas atuações excessivamente realistas, roteiros verossimilhantes e montagens invisíveis, qual o espaço disponível, no cinema de ficção, para que as histórias possam ser contadas de forma bizarra e artificial, propondo outra relação com as narrativas audiovisuais? Provocamos o nosso público a experienciar as sensações intensas de se submeter aos excessos, e explorar outros limites para o “bom gosto” nas artes.

Boas sessões!