ÁLBUM DE FAMÍLIA


Entre um retrato e outro, num álbum de família, somos convidados ao mergulho na intimidade. Em palavras escritas, rostos recortados, mechas de cabelo e registros de almoços de domingo, presentificamos as dores e belezas que compõem a vida privada. Nos descobrimos, assim como nos perdemos, com o repetir das páginas e das cenas. A objetiva, que captura com o passar dos anos os aniversários, casamentos e funerais, foca sobretudo no vínculo que conecta essas pessoas. É seguindo esse espírito, que o CINUSP apresenta durante 14 de junho e 11 de julho a mostra ÁLBUM DE FAMÍLIA, que traz, em suas páginas levemente amareladas, filmes feitos por realizadores sobre os membros de suas próprias famílias - mães, pais, avós, tios, irmãos e filhos, evocados dentro das mais complexas relações, para serem eternizados no museu audiovisual de suas histórias pessoais. Com uma programação que contará com bate-papos, debate e o nosso já tradicional podcast, convidamos o público a folhear esse rico acervo de vivências e afetos. 

Os filmes fixados em nosso álbum expõem os laços familiares em suas diversas formas - do nascimento à morte, do amor ao trauma, da distância à proximidade, da presença à falta. Ao encontramos as singularidades de cada casa, somos lembrados paradoxalmente de como certas experiências nos são comuns. Interrogar as próprias origens na frente e atrás da câmera é um mergulho corajoso em contradições e sentimentos muitas vezes esquecidos, utilizando o cinema enquanto meio para expandir nossas percepções acerca desses vínculos que nos fundam. 

A imagem do parto, etapa inicial no desabrochar de uma vida e marco transformador na existência de outras, revela a visceralidade deste marcante ritual familiar. Em Window water baby moving, seguimos o célebre diretor experimental Stan Brakhage no registro comovente de sua esposa, Jane, dando à luz ao primeiro filho do casal. Trazendo uma profunda aproximação entre vida e arte, o filme impressiona pela franqueza do caráter documental apresentado, partindo de uma experiência imediata para elaborar por meio da montagem um discurso lírico e esteticamente ousado. Não menos impactante é Nascimento e maternidade de Naomi Kawase, que filma o próprio parto e o conecta com o processo de envelhecimento e morte de sua mãe, dialogando com o ciclo inerente à vida. 

O liame mãe e filha é retratado em O corpo bonito, um híbrido entre documentário e ficção, em que Ngozi Onwurah, uma jovem mulher negra, explora os contrastes da relação com sua mãe branca que acaba de passar por uma agressiva mastectomia. Partindo de um estudo do corpo, o filme investiga as profundezas da força materna, entrelaçando temas como adoção, raça e sexualidade. Já em Um retrato de Ga, numa dialética semelhante entre juventude e maturidade, Margaret Tait aposta no humor e na potência dos detalhes para elaborar um poético registro de sua mãe, que nos afazeres cotidianos nos toca com sua leveza e carinho.

Pensar em família é também pensar em transmissão - de genes, bens, trejeitos, valores e, porque não, defeitos? Em Rebu - a egolombra de uma sapatão quase arrependida, a pernambucana Mayara Santana investiga suas condutas amorosas marcadas pela irresponsabilidade afetiva, a partir das semelhanças com o seu pai, Pedro Bala. Ao empregar prints, fotos guardadas em HD, stories e vídeos do YouTube, a diretora nos convida a refletir a respeito dos novos formatos de registro possíveis, bem como sobre a herança de certas atitudes. Os percalços da influência patriarcal também são tema de Afundar ou nadar, clássico contemporâneo do cinema autobiográfico. Su Friedrich ao descrever os acontecimentos de infância que moldaram a sua perspectiva sobre paternidade, efetua a efígie de um pai omisso. Em consonância com a narração vigorosa da diretora, surgem imagens de arquivos justapostas que dão forma às feridas deixadas pelos traumas da infância, até então ignorados.

A ausência permeia também uma série de outros vínculos familiares. Agnès Varda em seu curta-metragem Tio Yanco, apresenta a si mesma e aos espectadores seu tio distante, um artista plástico que vive em uma casa flutuante na Califórnia. Embalada pelas cores da contracultura dos anos 60, Varda, usando o cinema como um catalisador do encontro, cria um retrato descontraído e amoroso desse parente até então desconhecido. Já Pedro Nishi, acolhido por uma pequena garota chinesa em sua casa, é convidado a conhecer sua história e cultura no documentário Retratos para você. Por mais que não esteja fazendo um retrato de sua própria família, a escuta delicada e atenta do cineasta permite que as imagens sejam dotadas de um caráter tão íntimo quanto os outros filmes aqui expostos. 

Nos últimos tempos, tem-se falado muito de uma suposta “família tradicional brasileira”. Desnudando as contradições estruturantes desses núcleos familiares, Safira Moreira edifica uma crítica contundente ao sistema escravocrata que regeu, e ainda rege, várias das nossas relações sociais. O filme Travessia nos propõe a pergunta: quem tem direito à memória? Se a historiadora Maria Beatriz do Nascimento caracterizava o trauma colonial como o processo de “perda da própria imagem”, podemos entender que Safira procura a reparação dessa violência ao reivindicar em seu filme a preservação da história das famílias negras brasileiras. Já em FotogrÁFRICA, Tila Chitunda realiza uma investigação sobre sua própria família, que emigrou de Angola para o Brasil na década de 70 e foi constantemente interpelada pela discriminação, dominação e apagamentos impostos por um sistema social ainda colonial. A partir dos relatos de sua mãe, e pelas fotografias por ela guardadas, Tila elabora um processo de cura, procurando se reconectar com suas raízes africanas a fim de entender melhor as potências e controvérsias que permeiam seus vínculos familiares.

A auto representação indígena é também fundamental para a conquista da pluralidade de olhares dentro da cinematografia brasileira. Distanciando-se do costumeiro olhar exotizante, Ayani Hunikuin registra o cotidiano de sua avó homônima no filme Ayani por Ayani. Enquanto cuida dos seus netos mais novos, confecciona cestos e prepara refeições, Ayani transmite a partir de sua voz calma e amorosa os conhecimentos mais diversos, indo desde os padrões das pinturas corporais, até os processos de luto de sua cultura.

O poder da imagem sempre esteve atrelada à possibilidade de salvar algo do tempo e da morte. Na tentativa de conhecer mais sobre os detalhes de sua genealogia, em Metáfora ou a tristeza virada do avesso, Catarina Vasconcelos convoca material de arquivo, cartas e metáforas visuais para reconstituir poeticamente a imagem de sua falecida mãe. É também ao dar voz a um parente querido que partiu cedo que surge Por mais uma hora com você, documentário comovente de Alina Marazzi. Numa verdadeira luta contra o esquecimento, Alina tenta reconstruir a personalidade de sua mãe que cometeu suicídio quando ela ainda era criança, explorando filmagens e fotografias feitas por seu avô durante quase cinco décadas.

Atentar para os registros familiares contidos nesses filmes é também olhar, de certo modo, para nossas próprias trajetórias. Prismados através de diversas formas estéticas, encontramos neles um comum devir memorialístico. A percepção de nossos laços por meio do cinema cria imagens e sons portadores de sentidos, possibilitando um processo de reflexão e interiorização pouco ou nada acessível, anteriormente. É nesse tempo dilatado, entre um quadro e outro, que ouvimos histórias de juventudes passadas, de saudades presentes, dos caminhos cruzados e repelidos que constroem nossa malha familiar. Contados por toda parte, esses filmes reafirmam as particularidades compartilhadas por toda e qualquer família.

Boas sessões!  


Teaser - Álbum de família

A mostra ÁLBUM DE FAMÍLIA captura detalhes e registros de personagens que construíram verdadeiras narrativas cinematográficas da vida real.