ANIMAÇÕES DE NUESTRA AMÉRICA


A América Latina é uma região que abarca uma enorme diversidade de populações, que contam com línguas e histórias bem distintas. A união mantida entre os países latinos se dá através de algo que ultrapassa a geografia ou a colonização, dizendo respeito aos esforços de resistência e preservação das culturas que nos aproximam, mesmo em contextos tão plurais. Para homenagear a diversa gama de identidades latinoamericanas, o CINUSP Paulo Emílio dedica a sua tradicional mostra de animação do mês de julho a esse tema, com uma seleção de ANIMAÇÕES DE NUESTRA AMÉRICA. Entre os dias 12 de julho e 15 de agosto, a programação estará disponível online e gratuitamente contando com uma curadoria de curtas-metragens que retratam muitas Américas, além de entrevistas com realizadores e realizadoras dos filmes e um podcast.

A mostra leva em conta o conceito de “Nuestra América”, proposto, no século XIX, pelo líder da independência cubana, José Martí, apontando para uma unidade cultural e de luta dos povos da América Latina. Em oposição direta à autonomeação de "América”, por parte dos EUA, a “nossa América” reforça o ideal de união pela independência e revolução das Américas Central e do Sul. A escolha de animar histórias com um conteúdo político tão denso resulta numa forma prática de levar conhecimento para crianças e adultos acerca da luta empreendida por forças dissidentes contra o pensamento e a ação colonial na América Latina. Empregando diversas técnicas de animação, esse conjunto de curtas revela um nicho pouco conhecido da produção audiovisual de vários países e em diferentes épocas.

O tema das lutas campesinas e a história da população em contexto rural são fatores importantes para a formação sociocultural dos países latinoamericanos. Para representar esse contingente de vozes, o curta-metragem equatoriano, Vicenta, traz em seus desenhos feitos à mão um relato intimista da migração de uma campesina que vai da Bolívia ao Chile. Lá, alguns anos depois, seu filho desaparece enquanto lutava contra a ditadura do General Pinochet. De forma mais lúdica e colorida, misturando a técnica de stop-motion com tapeçaria, o filme chileno Cantar com Sentido, uma biografia de Violeta Parra narra a trajetória de vida da cantora, artesã e folclorista nascida no campo, que ganhou o mundo com sua força e poesia. Sua contribuição é até hoje fundamental para a cultura chilena e para toda a música folclórica da América Latina.

Também em diálogo com o cancioneiro popular, o filme argentino Balada para Satã utiliza uma técnica que mistura stop-motion e o movimento de atores para animar uma história acerca das tradições gaúchas. O curta representa a cultura gaúcha, presente no sul do Brasil e nos vizinhos Argentina e Uruguai, e tematiza o conflito entre o extrativismo predatório e a permanência de comunidades tradicionais. A tensão entre tradição e políticas imperialistas também é retratada no filme boliviano Avó Grilo, que nos leva a conhecer uma história baseada no conto milenar do povo Ayoreo. A animação de ilustrações digitais apresenta uma senhora indígena que, ao cantar, faz chover, mas é capturada por empresários, gerando miséria e seca para os povos da região. O curta faz alusão direta à crise da privatização da água na Bolívia, que gerou revoltas populares no início dos anos 2000 e segue a linha de representação lúdica de problemas políticos na sociedade latinoamericana. 

Referindo-se à força resistente da cultura dos povos indígenas, o filme Itziguari, a lenda purépecha é uma animação singular de um conto tradicional do povo indígena Purépecha sobre a origem da chuva. Feito com desenhos e narração de crianças de uma comunidade deste povo, o filme é parte de um projeto maior do diretor Dominique Jomard que conduzia oficinas de cinema para crianças de diversas etnias originárias do México. O projeto gerou inúmeros curtas-metragens do mesmo estilo, alguns dos quais também estão disponíveis no YouTube. Há ainda o chileno Halahaches, que retrata, através do stop-motion, o dilema de um jovem da comunidade indígena Selk’nam em discordância com a tradição de seu povo. O filme mergulha na tradição espiritual desse povo que vive no extremo sul do continente, na árida e gélida Terra do Fogo, utilizando sua própria língua tradicional e representando seus trajes típicos com riqueza de detalhes.

 Outro grande tema associado à ideia de Nuestra América é o da revolução. É sobre uma delas que o filme haitiano Uma Escavação de Nós se debruça, nos levando a um mergulho nas sombras de uma caverna nomeada em homenagem à revolucionária Marie-Jeanne Lamartiniére. Por meio da técnica de renderização 3D, o curta-metragem busca desenterrar as histórias pouco conhecidas da participação das mulheres na Revolução Haitiana, que resultou na primeira nação a abolir a escravidão no mundo. A Revolução Cubana é também um marco histórico para todo o continente. Logo após a tomada de poder, o novo governo criou o ICAIC, o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas, responsável por fomentar uma produção ativa no país até hoje. A primeira animação do instituto, A Imprensa Séria, produzida em 1960, apresenta uma crítica bastante atual à grande imprensa que vai contra os interesses populares. O filme dirigido por Jesus de Armas, pioneiro cubano na animação, se destaca não só por seu valor histórico, mas também por seu humor ácido e direto. Algumas décadas depois, em 1984, o tema da luta pela soberania nacional é mais uma vez exposto de forma crítica e bem-humorada em A Maloca, filme de Mario Rivas. O curta-metragem traça um panorama divertido das lutas dos povos em diversos momentos históricos: colonização, revolução e imperialismo, sintetizando a ideia de resistência no tipo de habitação tradicional que dá nome ao filme.

O filme brasileiro Meow!, dirigido por Marcos Magalhães, recorre ao humor para fazer uma crítica ao imperialismo estadunidense, satirizando os hábitos que são impostos no mundo inteiro por esse país, através da sua forte cultura publicitária. No contexto de decadência da ditadura militar e do bombardeio cultural dos EUA no Brasil, o curta-metragem retrata um gato de rua que vive faminto em uma grande cidade. A cada vez que mia por mais comida, uma mão diferente o alimenta com signos que revelam as mudanças sociais do país. O filme, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1982, é um marco do cinema de animação do Brasil, sendo reconhecido à época por sua mordaz crítica à dominação cultural, à miséria e à ditadura.

O documentário argentino Meu boné brilha nos conduz a uma análise mais contemporânea do contexto urbano, debruçando-se sobre a perseguição policial de jovens pobres da cidade de Córdoba. O filme transforma as imagens documentais dos entrevistados através da técnica de rotoscopia e denuncia uma realidade que parece comum aos grandes centros urbanos de todo o continente: a criminalização da juventude pobre. A técnica de rotoscopia também é empregada no chileno Arquivos da Revolta, desta vez através de um ensaio mais experimental e poético a partir de vídeos dos protestos ocorridos em 2019 no país. Ainda que as imagens se passem no Chile, o abuso de poder e a violência policial apresentadas no filme descrevem o contexto dos protestos em todo o continente.

A própria realização de um filme pode ser um gesto resistente, quando feito por pessoas marginalizadas dentro do circuito cinematográfico. Dirigido por um homem trans e protagonizado por pessoas trans, o documentário brasileiro Tailor exprime essa capacidade. No curta-metragem, a animação digital é intercalada com trechos live-action, revelando o depoimento do cartunista que dá nome ao filme e de outras pessoas transvestigêneres. Os relatos abordam a luta diária contra as violências transfóbicas, mas também a forma como as identidades transgêneras são fontes de potência, coragem e pulsão de vida. 

As interseções históricas que nos unem também nos motivam a conhecer mais sobre as realidades dos nossos hermanos latinoamericanos, como um meio de refletir e se aprofundar mais no nosso continente. Convidamos o público a embarcar nessas reflexões e se deslumbrar com as variadas manifestações artísticas englobadas pelo audiovisual nas Animações de Nuestra América.

Boas sessões!