ALGO DE ESTRANHO ENTRE NÓS


 

Nas tramas do nosso cotidiano, abraçar o estranho torna-se um ato de coragem, já que na tentativa de se controlar o entorno, coloca-se o incomum em clandestinidade. O cinema, no pulo entre uma imagem e outra, nos faz reencontrar faíscas do maravilhoso, do fantástico e do estranho. Pensando nessa capacidade cinematográfica de temperar nossa realidade, o CINUSP apresenta a mostra "ALGO DE ESTRANHO ENTRE NÓS", de 16 de agosto a 12 de setembro. Se nossos olhos, amortecidos pelos hábitos do dia a dia, chocam-se com o insólito, os personagens desses filmes aceitam a dança proposta e bailam junto à flexibilização do real, experimentando o estranho no seio do naturalismo, como sendo algo banal. Convidamos nosso público a acompanhar essas trajetórias insólitas, contando para além dos filmes, com a companhia da nossa programação de entrevistas, textos de curiosidades e o já tradicional episódio de podcast da série “CINUSP em Casa”.

Os dez curtas-metragens que compõem nossa mostra evidenciam que o estranho pode ser expresso do cômico ao trágico, passando pelo político, pelo absurdo e pelo sensual. Pode até aparecer na solidão completa ou em meio a uma multidão, desafiando o tempo em um lapso ou ocupando um espaço em que a temporalidade não mais importa. Com olhos de espectadores que testemunham essa flexão do normal para encaixar novos níveis de realidade, vivemos momentos de dúvida nos quais o impossível cabe dentro do possível. Duvidar da realidade, seja fílmica ou vivida, exige destemor. Mas antes mesmo de suspender nossa descrença e embarcar com Mèlies para a lua, já vivemos em um cotidiano suspeito.

Algo estrangeiro pode irromper dos lugares mais familiares, inclusive de dentro de nós.  Em Um Ramo, de Juliana Rojas e Marco Dutra, ex-estudantes de audiovisual da USP e celebrados no cinema de gênero brasileiro, uma mulher encontra uma folha crescendo em seu braço. O desenrolar das mudanças que ocorrem em sua pele, e que ela tenta esconder, instaura uma ambiência misteriosa no cotidiano familiar. Em um trânsito incerto entre o fantástico do ramo e o estranho dos machucados em seu corpo, o inexplicado faz parte da agonia de se transformar.

Há ainda a subversão de elementos comumente banalizados como forma de perturbação narrativa. Como no uso da violência, institucionalizada e naturalizada, mas que em curtas como A Lenda de Proitner, de Luiza Lubiana, se torna uma ferramenta de abstração. Em contraste com a idílica paisagem, surge a brutalidade e a crueza das relações entre um casal e um jovem menino que eles mantêm refém. O conforto das águas calmas e dos campos verdes se desfaz diante do sangue dos animais mortos, de pernas acorrentadas e de cabeças decepadas. Com verdadeiro senso de destruição das aparências, o filme instaura uma atmosfera de perigo e convida ao mistério do cotidiano, facilitado pela assimilação de elementos do folclore e da trilha sonora soturna de Jaceguay Lins. 

A aparição do inusitado, como característica intrínseca ao funcionamento poético de certas obras, causa uma ruptura na expectativa, com força desestabilizadora. É o que ocorre, por exemplo, quando algo irrompe das profundezas do esgoto, como o personagem de Merda, filme de Leos Carax. Ao eclodir do bueiro, envolto em sujeira, com unhas compridas e sem nenhuma discrição, essa criatura incômoda atormenta ferozmente a vida citadina de Tóquio. Com um humor peculiar, e beirando a paródia política que toca na questão do choque entre culturas, o filme explora o poder catastrófico do grotesco.

É também seguindo esse mesmo registro insólito que vemos o espaço urbano, agora de Lisboa, ser invadido pelos corpos sonâmbulos de Manhã de Santo Antônio. João Pedro Rodrigues, diretor conhecido por inserir o absurdo progressivamente em seus filmes, deforma uma tradicional comemoração portuguesa com os movimentos semi-mortos dessa multidão de adolescentes que, podendo cair a qualquer momento e em qualquer canto, segue se arrastando pelas ruas da cidade. 

O estranho, não mais como parte de um movimento coletivo, também pode ganhar corpo na imagem de um simples objeto: como um balão vermelho, encontrado por um garoto pelas ruas de Paris. O balão decide segui-lo, como se fosse um animal de estimação, e os dois se enlaçam em uma amizade lúdica e inocente. O balão vermelho, de Albert Lamorisse, é uma aventura pelas vielas da cidade sob a perspectiva dos olhos infantis, levando para cada esquina uma magia viva e contagiante, marcando para sempre a história do cinema com sua forma inventiva de dar vida a um objeto inanimado em 1956.

Se, por um lado, a magia do maravilhoso pode trazer adversidades quando em contato com a realidade, ela também pode servir de trampolim de possibilidades. No Quintal de um casal de idosos, que vive uma rotina corriqueira na região metropolitana de Belo Horizonte, eventos banais convivem de igual para igual com disrupções do surreal e do surpreendente. Dirigido por André Novaes, e estrelado pelos seus pais, o curta tem um olhar singelo com toques cósmicos. No pulo da situação banal para a surpreendente, o ímpeto da imaginação demonstra que podemos habitar em realidades mais livres e lúdicas. 

Mas desviando do estranho que se manifesta na magia inexplicada e normalizada como “real”, adentramos o caminho absurdo de Buster Keaton. Em Cops, o mundo quase seria como o conhecemos, não fosse o exagero que emana de cada espaço ocupado pelo corpo burlesco de Keaton. As situações sofrem distorções hiperbólicas e uma perseguição policial de um único homem logo envolve todos os policiais da cidade. Essa escalada de eventos absurdos também serve de recurso narrativo para Joseph Kilian, de Pavel Juráček e Jan Schmidt, como forma de materializar, no espaço fílmico, uma crítica à burocracia estatal de Praga, no contexto da Guerra Fria. Um homem parte em busca de seu amigo, mas tudo parece fugir ao seu alcance: lugares somem subitamente, portas não levam a lugar nenhum e janelas abrem-se para o concreto.

E mesmo dentro das regras do jogo do "real", servindo-se de manifestações que podem ser facilmente explicadas, ainda é possível criar espaços de fissura. No curta de Isabela Bianchi, Wan Ju Wu, conhecemos a rotina da prostituta Anastacia, com suas unhas feitas, corpo majestoso e uma enorme flexibilidade na execução de um de seus programas. Mas ela não é como as outras inúmeras mulheres em situação de prostituição: é feita de silicone e cumpre suas horas em um bordel especializado em bonecas hiperrealistas. A artificialidade dela  contrasta e questiona a espontaneidade da relação sexual que vemos com o cliente, filmada em estilo documental. Ao explorar regiões limítrofes, do tabu sexual e do jogo verdadeiro-falso, o conforto é aí posto de lado. 

Se o cinema introduz de várias formas suas faíscas do fantástico nas tramas da realidade, para embarcamos nas ilusões da luz e da sombra e vivermos uma suspensão das opressões próprias ao controle do real, o aparato fílmico pode também embaralhar nossa compreensão daquilo que é mostrado, escondendo nas sombras da fumaça o mundo em que habitamos. Em Vapour, de Apichatpong Weerasethakul, a fumaça que brota do espaço diegético evidencia a existência do quadro fílmico e a impossibilidade de mergulhar de fato para dentro da tela, onde os personagens continuam sua atividades como se pudessem ver além da névoa que cobre o mundo e a nossa visão.

Guiados pelos personagens que conseguem ver e viver o fantástico em meio ao cotidiano, o cinema nos leva por experiências mais livres do que as nossas convenções de normalidade podem conceber. Convidamos nosso público a dançar por essas diversas variações do real, e a viver junto aos filmes o estranho possível e impossível dentro das nossas possibilidades.

Boas sessões!