INVERSÕES DO BRASIL


Organizado conjuntamente pelos órgãos da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP o CINUSP Paulo Emílio promove a mostra INVERSÕES DO BRASIL entre os dias 13 de setembro e 10 de outubro, somando esforços ao evento 3 X 22: diálogos improváveis. Em 2022, completam-se 100 anos da Semana de Arte Moderna e 200 anos da Independência do Brasil e a discussão tem como finalidade discutir criticamente essas datas e os desafios contemporâneos impostos à sociedade brasileira.

A mostra será composta por longas, médias e curta-metragens, além de debates e um podcast, que conectam os traumas do passado colonial à configuração atual do Brasil, propondo questionamentos relativos às apropriações corporais, culturais e simbólicas, ao autoritarismo político, às noções de ordem e progresso, e de invasões territoriais. Ela será dividida em quatro eixos temáticos, cada um com duração de uma semana.

  Com DELÍRIOS DE PROGRESSO,  propomos refletir criticamente sobre o mito do progresso que ocupa o imaginário nacional desde a criação da bandeira até os dias atuais. Evocado constantemente em nossa história, esse ideal de progresso está sempre marcado por desigualdades, autoritarismos e violências. A contemporaneidade dos ecos do desenvolvimentismo nacionalista e autoritário de Blá Blá Blá, curta-metragem produzido no auge da ditadura civil-militar, escancara as contradições entre o discurso progressista e a postura tirânica dos governantes. Já o longa-metragem Brasil S/A se debruça sobre as fissuras de um país-empresa com seu neodesenvolvimentismo contemporâneo a pleno vapor. As plantações de cana-de-açúcar dão lugar a um programa espacial recheado de exploração de mão-de-obra, fervor neopentecostal e grandiosas máquinas de construção. Por fim, realizado em tempos pandêmicos, República revela uma descoberta esperançosa e trágica: o Brasil, e tudo que ele representa, é um “sonho” do qual não conseguimos acordar. O progresso pode ser lido nesses filmes como um fantasma, que assombra nosso futuro enquanto nação com uma falsa promessa do crescimento e impossibilita processos de reparação e de acerto de contas com o passado.

A segunda semana, por sua vez, apresenta CORPO: TERRITÓRIO RETOMADO, eixo composto de filmes que revelam as cicatrizes e as feridas abertas do processo colonial nos corpos negros e indígenas e no território invadido. A imposição violenta do idioma e da religião do colonizador são denunciadas, por exemplo, no curta-metragem O verbo se fez carne, no qual um homem indígena costura páginas da Bíblia em uma língua. Em O Caseiro, por sua vez, vemos estilhaçada a ideia de democracia racial na justaposição de duas telas: de um lado, o dia a dia de Gilberto Freyre em sua casa de estilo colonial nos anos 60; de outro, um dos atuais funcionários do lugar em mais um turno de trabalho. A partir da recuperação da terra e do corpo sequestrados no passado, os filmes deste eixo subvertem a própria ideia de Brasil e costuram uma luta pela emancipação política e cultural negra e indígena.

MODERNISMO: DEGLUTIR E VOMITAR, tema da terceira semana, dá prosseguimento aos questionamentos em torno da nossa dubitável “identidade nacional”. A partir do diálogo entre quatro filmes que abordam os desdobramentos daquele que foi o maior movimento artístico do início do século XX, são levantadas reflexões acerca do seu impacto ambíguo e da herança deixada em nosso cenário cultural e social. O homem do Pau-Brasil, último filme de Joaquim Pedro de Andrade, recria em chave  irônica  a badalada vida e produção da elite paulistana responsável pela Semana de 22, enquanto Por onde anda Makunaima? entrelaça o célebre anti-herói de Mário de Andrade com seu mito de origem, de modo a resgatar símbolos e denunciar a violência com os povos indígenas. Por fim, discutindo o legado modernista em sua vertente mais experimental, O Rei da vela expõe  a montagem histórica da peça de Oswald de Andrade, realizada pelo  Teatro Oficina, que foi censurada pela ditadura e virou marco do tropicalismo e do teatro brasileiro. Numa mistura antropofágica, devoram-se as referências emblemáticas para dar a ver as repercussões no contexto político da época.

Em nossa última semana, PAÍS DO FUTURO abordará as projeções distópicas de cinco filmes que enxergam, no horizonte do Brasil, a continuação da catástrofe repetida e reiterada de nossa história. A nova terra, pedaço do paraíso onde tudo cresce e floresce, é assombrada pelas constantes promessas de um futuro próspero desde a carta de Pero Vaz de Caminha. As obras reverberam, de forma crítica, essa total descrença de melhora, imaginando inevitavelmente um Brasil futuro ainda atravessado pelo autoritarismo e pela miséria. O poderio branco e masculino permanece vigente, seja na figura de Chico Cunha do longa Tremor Iê, ou na cabeça em conserva do líder supremo de Missão Berço Esplêndido. Contra essa trágica perpetuação, um convite constante à luta. Materializando esse chamado, surge Abeguar, um guerreiro indígena que vive por mais de 600 anos combatendo as injustiças estruturais do Brasil, na animação Uma história de amor e fúria. Passando por constantes processos de destruição completa, resiste nos filmes um funcionamento tal qual o do cerrado: insistindo em fazer brotar da devastação as pontes insurgentes de uma reconstrução.

Propomos um gesto de olhar para a história do Brasil a partir de uma lente crítica e contemporânea, deslocando a narrativa dos grandes feitos, contados nos livros tradicionais de história e relembrados por meio dos feriados nacionais e dos imponentes monumentos espalhados pelas cidades, em prol das pequenas narrativas esquecidas ou negligenciadas através dos séculos. Ao nos determos no sangue que escorre pelas frestas de nossa história, nos deparamos com um passado que não nos seduz, mas nos ajuda a compreender melhor o presente e recuperar o futuro, há muito tempo sequestrado.