INOCÊNCIA PERDIDA
No cinema, o olhar é constantemente transformado. As mudanças de planos, de perspectiva e a encenação dos atores são capazes de construírem mundos em poucos segundos, mesmo que seja para logo destruí-los. Assim é na vida, onde certezas dividem espaço com inseguranças, pequenos episódios são capazes de transformar nossa visão e criar uma nova consciência, ao mostrar a face nem tão dócil da realidade. Entre os dias 11 de outubro e 07 de novembro, o CINUSP apresenta a mostra INOCÊNCIA PERDIDA, composta por filmes que ultrapassam a fronteira entre o idílico e o imperfeito. Com uma programação que contará ainda com um debate e um podcast com realizadores, convidamos o público a corromper sua ingenuidade.
São, ao todo, doze curtas-metragens que buscam formas de mostrar essa perda de inocência, seja através de diferentes maneiras de se deparar com a crueza do mundo ou de uma nova percepção em relação a ele. A partir deles, procuramos questionar: por que o cinema e a inocência parecem inspirar questões tão parecidas? E, mais ainda, como a perda da inocência parece ser facilitada pelos mecanismos da construção cinematográfica? Já que, por vezes, nos sobressaltos da tela, não só os personagens deixam de ser inocentes, mas nós mesmos.
Na infância, as figuras adultas são referências tanto de aprovação quanto de espelhamento. As crianças, quando impossibilitadas de reproduzir o comportamento desses adultos, experimentam um certo amadurecimento. Como no curta Menino da Calça Branca, do compositor e importante nome da MPB Sérgio Ricardo, no qual a câmera adota o olhar singelo de um menino que deseja uma calça branca; mas quando ele finalmente a obtém, por mais que possa agora brincar de ser guarda ou imitar homens de classe alta, logo descobre que manter seus desejos nem sempre é uma tarefa fácil, pois a realidade, às vezes, decepciona e frustra. Desilusão similar é vista em Blieschow, filme de animação alemão realizado por Christoph Sorow, misto de ficção e memórias de sua própria infância. Na busca da aprovação do avô, Tom compete com o seu primo, um menino cuja personalidade comporta coragem e violência. Ao longo do curta, vemos a inocência de Tom ser corrompida pelas pequenas maldades que vê seu primo realizar. Cabe ao menino entender como irá reagir e lidar com seus sentimentos, princípios e atitudes para então criar, a partir dessa experiência, sua própria realidade.
Por vezes o amadurecimento pode ser catalisado por algum acontecimento e provocar a passagem de um estado mais ingênuo para outro. É o que ocorre no curta brasileiro Cenas de Infância, de Kimberly Palermo, em que um pequeno camundongo, durante uma noite de insônia, acaba descobrindo rotinas noturnas até então secretas. A partir disso, tudo ao seu redor se transforma, sua doce vida passa a ser vista por uma lente pervertida. Já em Meu Amigo Nietzsche, de Fáuston da Silva, é o encontro de um garoto com o livro Assim Falou Zaratustra que estimula a passagem. No curta, a perda da inocência se dá não através da dor, e sim pela realização. Pois, ao perceber que o mundo onde vive existe para além do senso comum e dos tabus reproduzidos ao seu redor, o garoto questiona as estruturas sociais que regem sua existência. Não demora para que sua família e vizinhos vejam seus aprendizados recentes como maléficos.
Muitas vezes, a perda de inocência se dá através de algum tipo de violência, criando uma cisão num universo infantil, com a percepção de que nem tudo no mundo irá recebê-los bem. Como no curta filipino Hilom, de P. R. Patindol, em que, da mesma forma que os planos de paisagens ressaltam uma beleza natural distinta da destruição do ciclone que acabara de atingir no país, a pureza de gestos infantis é contrastada com o preconceito de figuras adultas. Nele, a amizade de duas crianças é corrompida porque passam a sofrer comentários homofóbicos, forçando-as a interpretar maliciosamente sua amizade, até então construída em tom de ingenuidade, além de serem ensinados que a liberdade de amar não é para todos.
Também em A Culpa, do diretor mexicano Moisés Aisemberg, vemos a violência presente quando o jovem Diego vai acampar com o pai junto ao patrão e seu filho. Durante todo o curta, acompanhamos o filho do chefe avançar em seu espaço pessoal. Cena a cena, limite a limite, seu corpo vai sendo invadido, e somos cúmplices dessas agressões, sempre observando-as. Mais do que provocar um espetáculo com essas violências, cria-se um ambiente duro, difícil de encarar e, numa mudança de perspectiva da câmera, na qual o espectador passa de cúmplice a vítima, somos nós e Diego que deixamos de ser inocentes.
Em Ménilmontant, importante obra da vanguarda francesa da década de 1920, o diretor Dimitri Kirsanoff inicia o filme já com um entrecortado e violento assassinato: com uma rara astúcia narrativa, descobrimos que os mortos são os pais de duas meninas que logo vemos brincar candidamente nas árvores, até que os avistam. A partir desse evento, acompanhamos a jornada dessas irmãs em Paris; lá, com sua ingenuidade já corrompida, acumulam degradações: o abandono, a pobreza e a alienação. A infância, no filme, dura pouco, mas a inocência é quebrada até os últimos minutos. A narrativa singular, auxiliada em grande parte pela montagem (como o uso de fragmentação do espaço) evidencia um diálogo com as tendências da época, agindo de forma a tornar consciente o ato de se narrar o filme. Já em O Riacho da Coruja, de Robert Enrico, acompanhamos um homem no dia de sua execução: logo ele será enforcado, mas no momento fatídico a corda se rompe. Sua fuga nos leva a um caminho tortuoso, onde manter o desejo é o anestésico que resta para aquela condição: a de estar com a corda no pescoço. Esperança e ingenuidade, duas palavras que se fundem e definem o filme.
Há também filmes que partem do colapso da fantasia, ao questionar o que é verdadeiro e o que é imaginação, para pensar na inocência. Como no filme O Jogo, de Abderrahmane Sissako, no qual realidade e ficção são postas lado a lado, em montagem paralela: de um lado, temos o pequeno Ahmed que brinca com armas de madeira e, do outro, seu pai em guerra. Como pensar a naturalização desse processo, em que uma brincadeira pode representar tanto sua própria realidade no futuro quanto a realidade de seu pai no presente? Tanto o espectador quanto Ahmed são forçados a olhar a brincadeira como algo não tão inocente. Já no curta experimental, Shoot Don't Shoot, William E. Jones resgata imagens de arquivo de um antigo vídeo instrutivo para a formação de policiais estadunidenses: as imagens são de um treinamento real e reforçam o poder dos guardas e de controle da situação; ao mesmo tempo, colocam o espectador em uma situação “imaginária” de decidir quando atirar em um suspeito, criando assim um paralelo com o ato de encontrar pontos de referência na narrativa cinematográfica. Ao ser colocado nessa condição, nossa inocência se esvai associada ao doloroso poder que nos é dado.
A inocência também pode ser vista como forma de alienação. “Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar feliz do inocente as injustiças e as guerras, os horrores e o sangue”, é a fala dita pelo Deus de Pier Paolo Pasolini em A Sequência da Flor de Papel. O ingênuo protagonista caminha sorridente por uma avenida de Roma, sem se incomodar com o que acontece ao seu redor, mas sua jornada é justaposta por imagens da Guerra do Vietnã. Essa escolha do diretor obriga o enfrentamento direto à face violenta do mundo. Enfrentamento semelhante ocorre em Bala de Borracha, de Lawrence Abu Hamdan: a partir do julgamento em torno da morte de dois jovens palestinos por soldados israelenses, são usadas imagens de bandas sonoras para diferenciar balas de borracha de munições letais. O curta não se restringe a demonstrar a culpa dos réus, mas a explicitar o mecanismo que os militares têm usado para encobrir disparos letais a partir dos silenciadores de borracha.
Nesses filmes, a inocência prescinde de um juízo de valor: pode ser positiva ou negativa, boa ou violenta. Ela representa mais uma mudança de visão, uma consciência sobre algo até então escondido, ou até mesmo apaziguado. Convidamos nosso público a se colocar em risco, questionando a forma de enxergar o seu entorno e pondo à prova sua própria inocência.
Boas sessões!