ARTISTAS EM FRICÇÃO


Se um filme é capaz de nos emocionar e seduzir, a obra que um cineasta pode construir sobre outro artista carrega o potencial de ser duplamente fascinante. Cada retrato construído traz uma diferente abordagem, seja ela direta, intervencionista, subjetiva, espontânea etc. Mesmo que de formas distintas, conseguimos encontrar nesses filmes um desejo comum de celebrar e colocar em movimento a contribuição cultural deixada por um artista ou um grupo de artistas, estejam eles vivos ou mortos. Instigado por esses ricos intercâmbios, o CINUSP apresenta a mostra ARTISTAS EM FRICÇÃO, disponível dos dias 8 a 28 de novembro. Composta por doze filmes, nos quais variadas artes e perspectivas artísticas chocam-se, a capacidade de criação humana como um todo é reverenciada e enaltecida. 

Focado no mundo da poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen, de João César Monteiro, para além de uma biografia ou desenho da vida da poeta, faz um retrato sobre a poesia em si. A construção é simples: ouvimos a declamação de um poema feito por Sophia de Mello, enquanto a montagem passeia por paisagens e rostos que ilustram o que estamos ouvindo. A natureza é incorporada e utilizada como metáfora que engrandece a personalidade da personagem. Tão vasta quanto o mar e livre quanto os pássaros, sua demasiada imaginação pode ser comparada ao céu aberto sobre a praia.  

Em Ryan, há o retrato experimental de um animador. Essa biografia animada, vencedora do Oscar, foi realizada por Chris Landreth e foca em Ryan Larkin, um artista que, uma vez influente e também indicado ao Oscar, agora sucumbe à decadência física e mental. O filme organiza-se através de conversas entre Chris e Ryan, intercaladas por diversas sequências impactantes. A animação disforme, às vezes borrada, composta por criaturas humanoides amorfas e cores que saltam aos olhos, exemplifica bem o estado de desesperança em que Ryan se encontra. 

Sobre Pina Baush, coreógrafa fundamental da dança no século XX, a obra Um dia Pina perguntou… também traz em sua abordagem um olhar empático que serve ao propósito de desenhar o processo de criação da artista. Interessada na feitura de alguns de seus espetáculos, a diretora Chantal Akerman acompanha Pina nos bastidores, ensaios e divagações que embalam seu método. A relação com seus dançarinos e a forma como ela os conduz, estimulada pelas respostas a suas perguntas, revela uma grande cadeia de apoio e comprometimento que perpassa cada um. O caráter coletivo da arte é aqui reverenciado, e Pina encontra-se no centro dessa grande ciranda musical e corporal como maestra visionária. 

Em Esculturas de Sofu - Vida, diversos trabalhos de Sofu Teshigahara  são apresentados por seu filho, o cineasta Hiroshi Teshigahara, de forma experimental. As obras são reverenciadas ao passo que são exploradas sob uma trilha musical intrigante e chamativa. Se a ideia é explicitar o quão importantes e pouco convencionais são as obras de Sofu, a montagem faz-se igualmente não-convencional A sensibilidade é atingida através da experimentação, colocando em foco as obras ao invés da personalidade do artista em questão. 

Capturar a trajetória de vida de um artista dentro de um filme não é fácil. Por vezes, a fim de executar esses retratos, os cineastas devem realizar um recorte na vida do sujeito retratado. Nem sempre, porém, esse recorte é escolhido com tranquilidade. É o que ocorre em Encontrando o Homem: James Baldwin in Paris, do cineasta Terence Dixon, cujas intenções pessoais colidem diretamente com as ideias do personagem principal do curta, o escritor e dramaturgo James Baldwin. É das diferentes visões de mundo que surge o atrito entre equipe e personagem, e o que se vê a partir disso é um filme que se molda enquanto é feito. Baldwin interfere no processo do diretor, critica a abordagem escolhida sem pudores, revelando sua personalidade icônica com ímpeto e organicidade. Baldwin não se permite ser retratado de uma forma torta – ele quer, e mostra que pode, contar sua história como acha que deve, e não como está sendo pressionado a fazê-lo.  

Outro filme no qual o atrito entre o personagem retratado e o realizador cria uma tensão latente é Filme Para Um Poeta Cego, de Gustavo Vinagre. Nele o espectador é confrontado com um artista dedicado ao esfacelamento de tabus: Glauco Mattoso, poeta cego e sadomasoquista. Ao conhecermos os gostos pessoais e a rotina de Glauco, vemos o realizador adentrando e experimentando algumas práticas propostas pelo escritor. Levado ao seu limite, temos um diretor que se abre para a possibilidade de um diálogo conflituoso, colocando a fricção entre esses dois artistas como o ponto central do filme.        

Em Quebra Mar, filme brasileiro de Cris Lyra, as colisões e desavenças são deixadas de lado para a criação de um retrato sensível e de tom contemplativo. Acompanhamos jovens musicistas de São Paulo em uma viagem à praia. Distantes da cidade grande e confortadas pela companhia umas das outras, vemos as personagens em momentos de descontração, intercalados por momentos confessionais e de discussões políticas, tais como o racismo, a lesbofobia, o sexismo e o movimento secundarista. Trata-se de uma obra sobre identidade, preservação, segurança e amor próprio, onde a câmera enquadra suas personagens com tanto respeito quanto grava as imponentes paisagens naturais circundantes. O mesmo tom celebratório é utilizado em Maria Gladys, uma atriz brasileira, realizado por Norma Bengell. A proximidade entre a realizadora do curta e a personagem retratada faz com que a interação entre ambas flua livremente. Há um claro interesse na figura de Maria Gladys, em todo seu esplendor e espontaneidade, e por vezes o tom assemelha-se a um fluxo de consciência tropical onde o que importa é o que Maria diz sobre si.                

Pode-se realizar o retrato celebratório de um artista enquanto ele ainda está vivo, mas também é possível homenageá-lo na hora de rememorar alguém que já morreu. Em Di Cavalcanti, o cineasta Glauber Rocha reúne uma pequena equipe de filmagem e registra o velório e o enterro do pintor modernista Di Cavalcanti. O filme surge de um desejo de capturar os momentos finais da trajetória de Di com irreverência, revelando para qualquer um que assista ao filme a personalidade descontraída que Di apresentou em vida. A montagem frenética e a narração irônica criam camadas com tons de tropicália e modernismo brasileiro, ampliando o atrito presente entre Glauber, com sua forma histriônica de fazer cinema, e as convenções sociais do luto.            

Também é a respeito da morte o filme-homenagem Larisa, sobre a cineasta Larisa Shepitko. Elem Klimov, seu marido, dirige a obra, imprimindo em cada cena parte de seu afeto. Exaltando a vida e a obra da artista, ao mesmo tempo em que toca suas ideias com reverência, aqui a abordagem tem tom solene. A trilha musical emociona e os depoimentos de pessoas próximas ajudam a entender quem foi a falecida cineasta. O diretor se confronta com a impossibilidade de reverter a morte e, nesse processo, é forçado a se agarrar no impacto positivo que Larisa deixou, criando uma corda bamba entre a alegria e o pesar.

Já em A Voz e o Vazio: A vez de Vassourinha não vemos a equipe de filmagem e não há entrevistas, já que a obra se monta a partir colagens de reportagens e fotos que constroem a imagem do sambista paulistano Vassourinha. Faz-se um mosaico de ângulos e perspectivas que convergem na construção da memória de um ícone esquecido. Esse mesmo olhar fascinado e curioso é percebido em Ydessa, os ursos, etc., documentário de Agnès Varda sobre a colecionadora, artista e curadora Ydessa Hendeles. Varda quer, mais do que apresentá-la para o público, conhecer e compreender Ydessa e seu método de trabalho. Filha de sobreviventes do Holocausto, Ydessa conta sobre seus processos de criação e inspirações com a eloquência e a sensibilidade de uma mulher resiliente e delicada. A partir de uma fagulha de curiosidade – uma atração inexplicável que contagia a audiência –, a cineasta revela a obra e o pensamento da artista emulando no filme o impacto e a mudança de perspectiva suscitados por uma exposição que visita em Munique.

Seja pela combinação entre suas ideias e opiniões ou pelo puro e árduo esforço de seu corpo, artistas de diferentes áreas entregam tudo de si em busca da criação perfeita. É de causar extrema admiração e felicidade, portanto, quando as obras desses artistas são celebradas e reverenciadas ao longo da história, ainda que nem sempre de modo apaziguado. Convidamos a audiência a prestigiar as singulares visões artísticas apresentadas, a fim de exaltar, questionar, duvidar ou se emocionar com as obras de artistas que deram tudo de si para nós, o público. 

Boas sessões!