O LUGAR QUE HABITAMOS


O CINUSP começa o ano de 2022 com a mostra O LUGAR QUE HABITAMOS, demonstrando como o cinema é capaz de fazer um retrato das cidades e de seus habitantes, buscando aquilo que há de mais singular nessa conjunção. A mostra segue do dia 14 de fevereiro até 13 de março, com 12 filmes que exploram cidades do Brasil e do mundo em histórias que as tornam únicas.

Pessoas ocupando lugares, assim poderíamos definir o que é uma cidade. Esse também poderia ser o mote para a construção de um enredo: personagens realizando ações em determinados espaços. Nos filmes que compõem esta mostra, ocupar o espaço da cidade é a principal ação que move os personagens.

          Valparaíso, de Joris Ivens, explora as dinâmicas da cidade portuária que dá nome ao filme, jogando com o lirismo e a beleza dessa cidade chilena, enquadrada de maneira exuberante. As imagens e a narração, escrita por Chris Marker, elencam o que torna a cidade única: sua geografia cheia de morros e os bondinhos usados para locomoção, a àgua e o vento que ditam a maneira como as pessoas ocupam os espaços e a história de exploração daquele lugar ao longo dos séculos. Outro filme que trata da vida portuária é O Porto de Santos, de Aloysio Raulino, no qual a população marginal que ocupa os arredores do porto da cidade de Santos e suas vidas na região são vistos de maneira poética, dando enfoque ao caráter efêmero e boêmio condizente com a mística da vida portuária - “um amor em cada porto”. Com pouca narração, são as imagens que de fato contam algo e a câmera de Raulino traça a personalidade da cidade a partir de seus moradores.

Em Recife Frio, dirigido por Kleber Mendonça Filho, continuamos acompanhando cidades litorâneas. Mas nele ocorre uma inversão curiosa para nos fazer pensar sobre a maneira como a cidade de Recife se organiza, partindo de uma pergunta ao mesmo tempo irônica e provocadora: "e se Recife fosse uma cidade onde faz frio?” A questão abre espaço para reflexões sobre a ocupação do espaço urbano, mostrando como o clima e o espaço se articulam com a questão de classe, tudo isso de forma comedida, utilizando o humor para acentuar a crítica. Ser Feliz no Vão, de Lucas H. Rossi dos Santos, segue a mesma ideia de se pensar a ocupação de um espaço urbano onde a praia é o elemento fundamental da dinâmica da cidade – neste caso, o Rio de Janeiro. Aqui, sem a necessidade de propor uma “realidade alternativa”, são os depoimentos reais de uma parcela da sociedade que instigam o espectador a deduzir quem de fato tem direito à cidade e à praia. O filme ressignifica o antigo programa de televisão Documento Especial – “Os Pobres Vão à Praia” (1989), reempregando suas imagens que, originalmente, tinham uma carga negativa para afirmar aquilo que o conteúdo original questionava: os pobres têm sim direito à praia e à diversão.

Cidade de Contrastes, de Djibril Diop Mambéty, parte do diálogo entre um senegalês (o próprio Mambéty) e uma francesa para tratar dos conflitos da capital de um país que acaba de ter sua independência declarada. O tom irônico da conversa com as imagens de uma cidade, como indica o título, cheia de contrastes, retrata a Dakar do final dos anos 60. Já Na Rua, de Helen Levitt, James Agee e Janice Loeb, é um filme totalmente silencioso, cujas imagens apresentam o gueto do Harlem Espanhol da cidade de Nova York, nos anos 40. É um documento histórico, no qual as crianças são protagonistas, correm, gritam, choram e, principalmente, brincam nas ruas. A partir delas, é possível ter uma ideia de como se organiza a vida e de como aqueles sujeitos ocupam uma porção marginalizada da cidade.

De volta ao Brasil, Brasília - Contradições de uma Cidade Nova, clássico de Joaquim Pedro de Andrade, trata da construção de Brasília, uma cidade cujo alicerce é uma ideia de modernidade que entende o progresso como objetivo inquestionável de toda ação humana, e para tal transforma tudo através de uma lógica utilitarista. Essas noções perpassam todas as relações humanas dentro do espaço. O filme fala das desigualdades que nascem dentro de um espaço cuja proposta original era extingui-las, demonstrando certa falência desse tipo de urbanismo.

Em E, de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, a cidade de São Paulo se faz conhecer por um processo de transmutação da sua paisagem, quando casarões e construções antigas são transitoriamente transformados em estacionamentos enquanto o terreno espera aprovação para que ali sejam construídos grandes prédios que se misturam à paisagem cada vez mais verticalizada da cidade. O filme vai se construindo por meio de depoimentos dos que acompanharam essa mudança. A utilização de imagens de arquivo retiradas do Google Street View misturadas às captações do presente e a projeções do futuro se somam aos depoimentos, criando o retrato dessa São Paulo que se “moderniza” às custas da extinção material do seu passado.

A Passarela se Foi,  de Tsai Ming-Liang, explora a modernização da cidade de Taipei a partir da destruição de uma passarela para travessia de pedestres. Por meio da dinâmica entre personagens não conectados, o filme cria a sensação de nostalgia, ao mesmo tempo em que evoca o modo como o espaço urbano desorganizado pode ser hostil com as pessoas. A própria cidade é um organismo vivo, em reconstrução, engolindo aqueles que a habitam. Lúpus, dirigido por Carlos Alberto Gomez Salamanca, trata de uma dimensão ameaçadora dos processos de verticalização da cidade ao abordar um caso real ocorrido na cidade de Bogotá, em 2011. Dentro de uma megaconstrução de apartamentos no centro da cidade, um segurança é morto por cachorros que também estavam ali para guardar o espaço. Por meio do uso da animação, o filme traz uma tonalidade ainda mais obscura à história já sombria, ao tratar a morte como mera causalidade no progresso da cidade. 

Patrimônio Nacional, de Larissa Sansour, trata de um processo também hostil. A diretora retrata o espaço tomado da Palestina reduzido a um mega prédio, unificando toda a cidade, sitiado em meio ao deserto de Israel. Ao abdicar totalmente das falas, apostando nas imagens e na trilha musical, a diretora potencializa a crítica ali exposta. Os Muros de Sana, de Pier Paolo Pasolini, retrata a cidade que dá nome ao filme, a capital do Iêmen, e os muros que a cercam. A peculiaridade daquele espaço é o que intriga o diretor, já que Sana parece uma cidade parada no tempo, com uma arquitetura ímpar, de mais de 1200 anos, e uma população que vive como se vivia em um feudo medieval. O filme serve como um apelo de Pasolini à ONU, pedindo o tombamento da cidade como patrimônio cultural da humanidade, numa tentativa de salvá-la do ímpeto desenfreado da modernidade que destrói tudo aquilo que não se parece com sua ideia de progresso. A história desse lugar tão único se desvela aos nossos olhos por meio das imagens surpreendentes das pessoas que ali habitam e falas que argumentam por sua proteção. 

Cada filme aqui elencado explora um pouco do que são essas doze cidades, buscando unir sua dimensão mais geral – o que faz delas cidades: as pessoas no espaço – àquilo que existe de mais singular em cada uma delas: as ações específicas de determinadas pessoas nesse espaço no momento da realização do filme. Convidamos nosso público a conhecer cada uma das cidades em suas mais potentes diferenças, por meio dos olhos de tantos cineastas que as enxergaram e foram capazes de capturar a arte de ocupar o espaço com tanta beleza e de maneira tão diversa.

Boas sessões!