JUVENTUDE TRANS-VIADA
Se arrumar e sair sem saber a hora de voltar. Flertar, beijar, beber, rir e chorar. Juntas ou separadas, idealizadas ou não, todas essas imagens povoam o imaginário coletivo sobre o que seria a juventude vivida em seu maior potencial. Nesse cenário, a vazão aos desejos da juventude pode se dar, pois nele ocorre a ebulição e a transgressão, e onde tudo o que está reprimido se torna exacerbado. Pensando nisso, o CINUSP apresenta a mostra JUVENTUDE TRANS-VIADA, de 14 de março a 17 de abril, com 10 filmes que trazem personagens (em sua maioria LGBTQIA+) agentes de sua própria juventude.
Em dois anos de confinamento pandêmico, um "sequestro" dessa juventude foi provocado, com a vivência exacerbada sendo prejudicada, reprimida e, com isso, o desejo de “fervo” só aumentou. Os filmes presentes nesta mostra visam instigar esse desejo, dando ao público um gostinho do que eles não puderam ter durante esse período. A vivência entre amigos, a autodescoberta, a identificação, a irreverência e a extrapolação dos limites são tônicas presentes nesta mostra.
A ânsia por mudanças, típica da juventude, pode ser observada nas personagens de Peixinhos Dourados na Piscina, em que um grupo de garotas entediadas, numa pacata cidade do Japão, decidem colocar centenas de peixes numa piscina. Através de uma montagem inquieta, a busca pela subversão se torna a saída para um cotidiano repetitivo. Esse mesmo anseio por libertação pode ser observado em A Festa e os Cães, de Leonardo Mouramateus, em que o diretor narra suas próprias experiências, resultantes de anos de festas, encontros e noites entre amigos e tiradas em fotos analógicas. A sequência de registros que o filme apresenta, junto à narração do realizador com seus amigos ao fundo, cria um sentimento misto. Por um lado, a alegria pelas festas e experiências entre amigos, ressaltando um certo caráter de inadequação e libertação através desses momentos. Mas, ao mesmo tempo, sentimos certa melancolia nostálgica perpassando esses momentos que, no final da juventude, parecem distantes, mas não menos importantes.
O relato em primeira pessoa nos leva a um mergulho de cabeça na subjetividade festiva do personagem de Looping, cujo olhar apaixonado nos revela os primeiros encontros do jovem com o seu amado. O amor pode ser um potente entorpecente, sobretudo quando a fragmentação do cinema destaca os olhares, sorrisos e momentos únicos, algo que o diretor Maick Hannder soube traduzir de forma envolvente na linguagem do curta. Além de nos deixar vidrados, o amor também colore nossos dias em Os Últimos Românticos do Mundo de Henrique Arruda. Em tons pastéis, com momentos musicais vibrantes e a tensão sexual acesa pela urgência do clima distópico, um jovem casal vive seus últimos dias na Terra.
Já em Saco de Pulgas, de Věra Chytilová, uma câmera subjetiva assume o papel da nova integrante de um internato feminino, na Tchecoslováquia do início dos anos 1960, marcado pela opressão e pelo desejo de transgressão, muitas vezes associado à personagem Jana, que atrai em diversos momentos a câmera-personagem com um olhar sugestivo. Junto com a nova aluna, acompanhamos o dia a dia das garotas, em seus momentos de tarefas e de liberação. Um filme que transgride formal e tematicamente, traço marcante na obra posterior da diretora.
A imprevisibilidade dinâmica da juventude se manifesta também na forma como alguns dos filmes selecionados se apresentam. Uma produção criativa no modo como captura a realidade de suas personagens, Agir Como Tola nos apresenta um grupo de amigas em um bairro americano de classe baixa. Oprimidas pela conjuntura econômica de onde vivem, as amigas passam seus dias em terrenos lotados de entulho, ruas de casas simples, comprando bebida em lojas de conveniência e posando umas com as outras como se fossem modelos em uma campanha de moda. A fotografia em 8mm produz cenas curtas, que são montadas como vinhetas, e o grupo parece estar em vários lugares ao mesmo tempo, ocupando todo o espaço que conseguem, sempre insatisfeitas onde quer que se encontrem. Há uma ansiedade por movimento latente na agilidade dos cortes, ao passo que a narração da protagonista evidencia o sentimento de voracidade por uma vida diferente. Sede de mudança e dinamicidade formal também caracterizam Um Dia Com Uma Linguiça, curta dos anos oitenta que acompanha o frenético dia de uma garota que acorda e decide performar o gênero oposto. Se a juventude é o momento da vida de um indivíduo marcado por mutações, esses curtas nos revelam que, às vezes, tais desvios são bem-vindos, necessários ou até mesmo desejados, pois crescer também é descobrir mais sobre si mesmo, onde, como e com quem se quer estar.
Na esteira da investigação pessoal, o premiado curta brasileiro Eu não quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro, nos traz de forma leve e sensível o trajeto de autodescoberta de Leonardo, um adolescente cego que se descobre homossexual e precisa lidar com esse novo desejo e com o ciúme de sua amiga Giovana. É também no ambiente escolar que conflitos internos e externos acontecem em Kiki e os Desajustados, de Natália Leite, no qual vemos um grupo de amigos comumente considerados como “fora do padrão” se rebelarem contra as normas sociais do colégio depois que Kiki, uma adolescente trans, é impedida de entrar no banheiro feminino. O filme apresenta uma estética e uma trama parecidas com as de filmes adolescentes clássicos, mas adota uma estrutura narrativa semelhante à de um trailer de longa-metragem.
Por fim, em Peixe, da diretora mineira Yasmin Guimarães, acompanhamos alguns episódios da vida de Marina, uma jovem entregadora que cruza as ruas de BH. A protagonista atravessa e é atravessada por suas relações: sua namorada, suas amigas e ficantes.
Um retrato de uma juventude que tenta sobreviver em um contexto de precarização crescente, um retrato de quem "vende o seu peixe" - tornando-se uma fiel representação do Brasil atual. O filme transita entre o trabalho e a diversão, o que é internalizado de dia torna-se livre à noite.
Cada filme selecionado explora uma faceta distinta da juventude, com contextos e personagens diversos, mas todos se unem a um mesmo fio condutor: o desejo de se viver a juventude da forma mais intensa possível. Tendo em vista estes dois últimos anos, em que essa vivência não pode ser externalizada, a mostra foi pensada para refletir sobre esse período de transição – seja ele sanitário, de reabertura ou até mesmo de maturação da idade –, convidando a todos, jovens ou não, a experienciar esse fervo por meio do cinema.
Boas sessões!