COWBOYS TAMBÉM CHORAM


O cowboy é uma figura fundamental da historiografia norte-americana, e um exemplo de como a produção cinematográfica é central na construção de identidades nacionais. Símbolo chave da expansão em direção ao oeste e da virilidade, proatividade, força bruta e impassividade completa, eles são homens que mais instigaram do que enfrentaram a violência na fronteira entre o mundo “civilizado” e o “selvagem”. O cinema hollywoodiano se estabeleceu enquanto indústria ao longo de décadas de filmes que consolidaram a figura do cowboy no imaginário popular. Entre inúmeros personagens clássicos de John Wayne, Clint Eastwood e muitos outros, o gênero Western cristalizou a imagem daquele homem de chapéu, branco, hétero, cisgênero e estadunidense na mente do público…

 Entre os dias 12 e 23 de Setembro de 2022, o CINUSP apresenta, por outro lado, uma leva de filmes que bebem das referências estéticas do Western para desconstruir a imagem clássica do cowboy por diferentes frentes, motivos e objetivos na mostra Cowboys Também Choram. Começando pelo elemento pivotante do cowboy: sua masculinidade. Filmes como Thelma e Louise e Johnny Guitar vão de encontro às bases dessa masculinidade, retratando protagonistas femininas que percorrem as paisagens e cenários mais típicos do Western em sagas para se afirmar ou até mesmo lutar pela própria vida em um oeste que sempre lhes negou qualquer força. As performances cativantes de Susan Sarandon e Geena Davis no primeiro longa, e de Joan Crawford no segundo não deixam dúvidas sobre os trejeitos e a robustez da alma vaqueira de suas personagens.

E mesmo essa rigidez típica do cowboy é colocada em xeque no filme First Cow - A Primeira Vaca da América. Seus dois protagonistas, unidos pelo singelo objetivo de construir uma vida na fronteira através do seu trabalho, terminam por encontrar um laço de amizade tão genuíno e tão delicado que rompe com toda fachada de severidade associada aos clássicos brutamontes dos Western. Alguns outros longas vão até mais longe nesse esforço de desafiar a performance de gênero tradicional dos cowboys. Como o recente Ataque dos Cães, com seu protagonista aparentemente fraco por conta dos seus aspectos que flertam bastante com a identidade queer, mas que aos poucos vai demonstrando uma força brutal de outra ordem. E logicamente o já renomado O Segredo de Brokeback Mountain abalou as estruturas do Western ao retratar o romance proibido entre dois cuidadores de rebanhos que encontraram nas vastas paisagens desertas do oeste o cenário perfeito para uma paixão a ser levada pela vida toda.

Em outros filmes, o cowboy é agora deslocado desses seus cenários habituais com diferentes finalidades. Primeiro, demonstrar como a sua figura transcende as pradarias estadunidenses e pode ser encontrada esteticamente em outras partes do mundo. Nosso Tempo leva o espectador para além da fronteira, no cenário usualmente coadjuvante dos Westerns: o México. Onde um poeta criador de touros de briga envolve-se em um sútil triângulo amoroso no casamento aberto com sua esposa. 

O Cangaceiro, clássico da nossa cinematografia, traz o imaginário do cangaço e de figuras como Lampião, traçando paralelos com o Western no sertão brasileiro, onde Teodoro, do bando de cangaceiros de Galdino Ferreira, se apaixona por Olívia, professora capturada pelo bando durante um ataque. O filme emula o gênero faroeste e mescla com o ar de melodrama no sertão brasileiro. Em Trinity É O Meu Nome, o cenário dessa vez é o mesmo dos cineastas que historicamente mais reinventaram o gênero, no chamado “Faroeste Espaguete”: a Itália, onde a figura do cowboy é desconstruída com uma boa dose de humor. 

Outra razão para retirar o cowboy dos seus saloons e diligências de sempre é explorar o anacronismo da sua figura no mundo moderno, apesar das suas fortes raízes históricas. É o que ocorre com o texano de Perdidos na Noite, que sai em busca de melhores oportunidades nas noites de Nova York e termina envolto pelo mundo da prostituição, que gradualmente irá atenuar todos os aspectos da sua identidade vaqueira. 

Ainda pensando nas origens do cowboy na história norte-americana e no seu papel na expansão das fronteiras do capitalismo, um processo marcado pela exclusão direta de minorias étnicas, o filme que vai de encontro a esse flanco é Alma de Cowboy. Seu elenco composto inteiramente por atores negros apresenta uma visão contemporânea sobre essas figuras e a ínitma relação com seus cavalos, rompendo com as raízes do cowboy estadunidense. 

Não há dúvida de que ainda resta muito a ser explorado sobre essa figura tão enigmática e tão fundamental para a história do cinema. Através dessa mostra, o CINUSP apresenta ao seu público uma seleção de filmes que desafiam e desmantelam o imaginário comum do cowboy por diversas facetas, de modo a mergulhar na essência complexa, sentimental e profundamente humana dessas figuras que sempre se quiseram tão impassíveis.