SONHADORES


Um sonho é tudo aquilo que desejamos de maneira intensa, constante e que pode ser a força motriz de uma vida. A ânsia de nossa cultura por histórias de conquistas e jornadas em busca de sonhos fica evidente quando percebemos  a significativa  recorrência desses temas na história do cinema mundial. 

 

Personagens que têm suas vidas movidas por um objetivo – que pode advir de uma paixão ou necessidade individual ou coletiva – tiveram, em diversas cinematografias, seus  sonhos representados de maneiras muito diferentes. O que é almejado varia  de acordo com a cultura, com o espaço e com o tempo. São essas as histórias presentes na mostra Sonhadores, que o CINUSP apresenta dos dias 30 de janeiro a 26 de fevereiro de 2023, abrindo o ano. Todos os 17 filmes apresentados trazem visões e tipos muito distintos de sonhos: desde o mais individualista até o sonho coletivo, em que quase “se sonha para o outro”.

 

Revisitando o tema na história do cinema, Rocky: Um Lutador é incontornável. O clássico de 1976 que lançou Stallone ao estrelato nos traz outras camadas para além da sua inquestionável cercadura de sonho americano. Balboa é o retrato de um país falido e desmoralizado após diversas crises políticas e financeiras ocorridas na década, mas que tenta se reerguer, pelo menos no campo da ficção. O esporte, não só em Rocky mas em diversos outros filmes, é representado como via de ascensão social, reproduzindo o imaginário existente do lado de fora da ficção. E é do lado de lá que se passa Basquete Blues, documentário que acompanha  a jornada de dois garotos negros em busca de uma chance de jogar na NBA. Filmado ao longo de  4 anos, observamos  separadamente os dois percursos, as drásticas mudanças na vida pessoal de cada um e o impacto da vida fora da quadra, em que  desigualdades sociais e educacionais são evidenciadas. O triunfo no esporte não é tão simples quanto em Rocky, deixando clara a oposição entre realidade e ficção.

 

Há também a ideia de um sonho imposto ao sujeito e que, mesmo agindo a partir de uma força externa (afetiva, econômica), pode dar sentido à vida dele. É o caso de 2 Filhos de Francisco, clássico do cinema popular brasileiro de Breno Silveira lançado em 2005, que conta a história da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano, criada a partir do desejo do pai, Francisco, de que os filhos seguissem a carreira musical.

 

No vasto território da arte, a busca pelo reconhecimento talvez seja um dos motivos das buscas e angústias de seus agentes. Esse  campo é ilustrado muito bem por outros dois filmes presentes na programação e realizados no mesmo ano, 1957. O primeiro deles é Rio, Zona Norte, clássico do cinema brasileiro dirigido por Nelson Pereira dos Santos e estrelado por Grande Otelo, interpretando o modesto sambista Espírito da Luz, que sonha em ter seus sambas gravados. Otelo mais uma vez mostra seu talento dramático para além das chanchadas, em uma cena histórica em que Espírito da Luz canta seu samba para Ângela Maria. O segundo filme também apresenta  um poeta como protagonista: em Pyaasa, clássico de Bollywood dirigido e interpretado por Guru Dutt, o objeto de desejo é a publicação de sua poesia. O filme é um espetáculo que não tem medo de conjugar o melodrama com o musical, e o romance com o drama pessoal e existencial. Formalmente audacioso em diversas passagens, o filme foi pioneiro na  mescla de gêneros característica da indústria cinematográfica indiana. Nas duas obras, sonhos, desilusões, pobreza e perdas atravessam a vida dos protagonistas e a realização do sonho só se concretiza quando o sujeito já não existe mais – de maneiras distintas em cada um dos filmes.

 

La La Land: Cantando Estações representa na mostra um tema vastamente  explorado pela indústria cinematográfica: o sonho de Hollywood e da música, em que a  paixão pela arte e a necessidade se misturam na progressão dos personagens. O  filme traz consigo uma síntese formal e temática dos musicais clássicos, prestando a eles uma singela homenagem. Dentre esses clássicos, podemos citar Nasce uma estrela, também presente na mostra, que não se esquiva de mostrar uma realidade muitas vezes oculta da indústria cinematográfica e do star system (e que vem à  tona cada vez mais na atualidade): os assédios, pressões e abusos, assim como os consequentes impactos psicológicos decorrentes. A história da protagonista se confunde em vários momentos com a biografia da própria  Judy Garland, atriz principal. No mesmo ano, 1954, e no mesmo país, foi produzido e lançado o filme O sal da terra, censurado durante o macarthismo. O filme traz  um contraponto radical ao sonho americano, narrando a história de  mineiros do Novo México e de suas famílias que lutam  por melhores condições de trabalho, salário e vida digna.

 

Outro tipo de sonho abundante em representação no cinema é o anseio pela saída da terra natal em busca de uma vida melhor, como ferramenta de realização de outros sonhos. Dois dos filmes da mostra apresentam bem esse tema e o fazem de maneiras muito distintas. Em Para onde ir?, filme libanês dirigido por Georges Nasser, é discutida  a questão da emigração por meio da história de pai e filho. O primeiro emigra para o Brasil, deixando sua família para trás, retornando  anos depois e encontrando seu filho mais novo com seu mesmo anseio, o que faz com que ele tente impedi-lo .O sonho é geracional: o primeiro a tentar mudar o seu futuro inspira os que ficaram. Se o desejo se mantém, é porque os mesmos condicionantes se mantiveram. Já em Paddington, animação britânica, acompanhamos um urso peruano que desembarca em Londres à procura de um lar, tecendo um comentário simples e doce sobre essa condição tão complexa e atual.

 

Em Kini e Adams, filme de Burkina Faso, e no iraniano Filhos do Paraíso, ambos lançados em  1997, um sonho é transformado em um objeto palpável. No  primeiro, acompanhamos os esforços e conflitos de dois amigos de um vilarejo no interior do país que, aos poucos, montam  um carro (a partir de  restos de vários outros) com o objetivo de um dia ir para a cidade. Já no segundo, Ali perde os sapatos da irmã, o que faz com que os dois revezem um único par. Em dado momento, o garoto entra em uma competição em que um dos prêmios é um par de sapatos, seu desejo é dá-lo para irmã. O sonho é fazer o bem a quem se ama.

 

Em  Um Sonho de Liberdade, o protagonista, Andy, acredita ter sido preso injustamente. No filme, o sonho pode ser percebido não apenas  como o desejo de saída mas também o desejo de ressignificação de sua estadia na prisão, que fica em evidência em grande parte do filme.

 

O objeto do sonho, porém,  nem sempre é facilmente identificável. Em  Noites de Cabíria, uma das obras mais célebres de Federico Fellini e do cinema mundial, acompanhamos a prostituta Cabíria, que apesar de uma série de frustrações não hesita em continuar a ver a vida com otimismo e buscar relances de esperança em cada pequena oportunidade que cruza seu caminho. Atitude parecida tem Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, de Suzana Amaral. A datilógrafa nordestina muda-se para São Paulo e sonha com a felicidade, porém encara essa aspiração como algo distante, mantendo o vazio e o silêncio clariciano.

 

Em O Canto da Saudade, último longa-metragem dirigido por Humberto Mauro – figura essencial para a história do cinema brasileiro –, também temos um protagonista cujo sonho não é imediatamente claro. No filme, Galdino, acordeonista, é apaixonado pela filha do coronel da região Maria Fausta, que por sua vez é apaixonada por outro homem. Mas, aos poucos, é revelada uma outra dimensão para além da ânsia de  ser amado de volta. Galdino apresenta  um desejo mais existencial, de reconhecimento e admiração  na região  por meio  de sua música. Numa sequência extraordinária, o protagonista se imagina um músico virtuoso, que recebe a atenção e reconhecimento de todos os habitantes da cidade, um  sonho aparentemente modesto, mas tratado de forma poética e singular pelo diretor . A música também se torna o mote do sonho em Swing Girls, filme sobre um grupo de meninas do ensino médio que formam uma big band de Jazz como pretexto para escapar das aulas e acabam por se apaixonar pela música e transportam esse sonho para além dos portões da escola.

 

Os filmes presentes na mostra nos trazem distintas perspectivas do sonhar, retratando desde aspirações individuais até aspirações coletivas e conjugando diferentes objetivos, não só ligados à prosperidade econômica e social, mas igualmente, dando sentido para as vidas das personagens.

 

Boas sessões!


 


TEASER | SONHADORES | CINUSP 2023

Mostra CINUSP | Sonhadores
Entre os dias 30 de janeiro e 26 de fevereiro o CINUSP apresenta Sonhadores. A mostra apresenta desejos que são a força motriz da vida de diferentes personagens do cinema mundial.