MITOS E LENDAS


Inicialmente transmitidos de forma oral, os mitos e as lendas atribuem sentido ao universo, e são frutos de inúmeras colaborações ao longo do tempo, sem que haja uma única autoria. Eles traduzem a visão de mundo e os sentimentos de um grupo, ou seja, seu conteúdo é comum a toda uma coletividade. É a partir de histórias passadas de geração em geração que interpretamos e criamos nossa cultura; e o cinema, parte da cultura coletiva moderna, assume papel importante como forma de contar essas histórias. Pensando no papel que as narrativas possuem na construção de cada nação ao redor do mundo e de como o cinema as transpõe, o CINUSP apresenta do dia 27 de fevereiro ao dia 17 de março a mostra Mitos e Lendas

Tendo em vista essa pluralidade de narrativas mitológicas, apresentamos Sob o Signo do Vodu, um raro filme de Pascal Abikanlou, considerado pai do cinema do Benin. Em um embate entre tradição e modernidade, um jovem procura uma solução ao ter negligenciado um ritual para divindades vodu. Na mesma medida que a personagem procura uma saída para seus problemas, é também colocado em pauta as tensões de um país africano recém emancipado que busca seu próprio caminho de independência. 

O mito pode ser intrínseco à cultura fechada de um povo ou pode ter caráter universal, aparecendo de diferentes formas em diversas culturas, que é o caso do mito de Édipo, adaptado inúmeras vezes ao longo dos séculos. O mito toma forma em uma das suas versões no filme Édipo Rei, de Pier Paolo Pasolini, onde o diretor cria um espetáculo visual e propõe uma transposição de tempos, que localiza Édipo não apenas na Grécia antiga, mas também na Itália dos anos 20 e dos anos 60. Outra adaptação de um mito que se encaixa na memória social ocidental é Fausto, de F. W. Murnau, que por meio de inovações técnicas traz nesta versão a história de um intelectual dividido entre a religiosidade medieval e o humanismo renascentista do século dezesseis.

Rituais e práticas de fim religioso também adaptam e estabelecem relações narrativas, que podem se manifestar enquanto mitos fundadores, como em O Samba da Criação do Mundo, de Vera de Figueiredo. Inspirado no enredo da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis de 1978, a obra conta — através do canto e da dança carnavalesca — o princípio da criação do mundo a partir das tradições do povo nagô. Outra obra que parte de uma gênese mitológica é Fruto do Paraíso, de Věra Chytilová, que propõe uma releitura contemporânea e psicodélica da história bíblica de Adão e Eva. Em um delírio onírico e experimental, vemos planos no qual a profundidade de campo achatada e a multiplicidade de texturas revelam uma grande proximidade a pinturas. 

Ao pensarmos na imagem no campo plástico, A Lenda da Fortaleza Suram, de Sergei Parajanov, traz uma releitura da lenda georgiana. Marcada por planos sem profundidade e simétricos, brinca com o imaginário folclórico e compõe quadros inspirados no movimento barroco. Em Silvestre, de João César Monteiro, adaptação de uma fábula portuguesa medieval com ecos do conto popular Barba Azul, há o desdobramento da estória com recursos teatrais que também se assemelham a pinturas religiosas barrocas. A estilização e o ressurgimento de mitos antigos para a contemporaneidade também se dá em Pele de Asno, de Jacques Demy, que por dentro de figurinos e cenários kitsch e extravagantes, propõe uma releitura de um conto de fadas excêntrico francês.

A importância cultural dessas histórias é tão grande que sua representação está presente  desde os primórdios do cinema silencioso. Uma dessas realizações se dá com um antigo mito nórdico adaptado por Fritz Lang em Os Nibelungos - A Morte de Siegfried. A jornada do herói Siegfried é composta por sombras delineadas e imagens distorcidas que evidenciam o caráter expressionista da obra. Há também Golem, de Paul Wegener e Carl Boese, filme menos conhecido do expressionismo alemão. Ao retratar um mito da diáspora judaica, utiliza-se de recursos estilizados: prédios escuros e macabros, maquiagens carregadas e curvas exacerbadas.   

Através de um universo mágico estonteante, Tsui Hark, em Serpente Verde, repensa um antigo mito chinês e opta por pautar a fantasia no que é palpável, construindo materiais como plástico, tecido e espuma ao invés de depender de efeitos especiais ou trucagens. A guerra é uma maldição que os homens rogam a si mesmos e Kuroneko, mito fantasmagórico japonês de Kaneto Shindo, tal qual Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi,  pautam isso. No primeiro, o corpo de mulheres mortas, após receber lambidas de um gato preto, torna-se o veículo através do qual um espírito as vinga das consequências desastrosas da guerra que os homens causaram, assim como Contos da Lua Vaga, que constrói o mito através de uma mulher fantasma, condenando os homens a viver assombrados pelo mal que fizeram.  

Mulheres afetadas pela guerra são um tema discutido em A Teta Assustada, de Claudia Llosa, que retrata uma lenda na qual mães abusadas no Peru transferem seus medos e feridas por meio do leite materno ao amamentar suas crianças, simbolizando dores coletivas de uma nação destroçada em busca de uma cura. A Nação Secreta, de Jorge Sanjinés, narra a história do indígena Aymara, expulso de sua comunidade por submeter-se a interesses estrangeiros. Ele então percebe que a única maneira de ser readmitido é voltando à cosmologia e aos rituais da cultura de seu próprio povo. 

O CINUSP convida a pensar, por meio do cinema, que os mitos são uma força coletiva e atemporal. São o passado, o presente e o futuro de muito do imaginário dos povos que representam. Sempre em constante movimento de reelaboração.

 

Boas sessões!