DA TELINHA PRA TELONA


Que há diferenças estéticas entre obras feitas para TV e para o cinema é evidente, mas essas diferenças não significam que os produtos audiovisuais feitos para televisão não são de importância menor que o cinema. A dicotomia entre os dois veículos está cada vez mais sendo ultrapassada, já há muito tempo eles se influenciam mutuamente, incorporando elementos de linguagem de um e de outro, mas com estruturas de produção essencialmente díspares.

Já há décadas, a televisão é o principal meio de entrarmos em contato com obras audiovisuais, sejam em canais abertos, fechados ou streaming. A sala de cinema acaba ficando reservada para o espetáculo, para imersão gerada pela riqueza técnica, com imagens em alta definição projetadas em uma grande tela, som espacializado -  um espaço que favorece a “entrega” do espectador para a obra exibida e para o pacto de assistir a algo coletivamente, diferente da experiência individual da televisão.

Houve um momento em que as diferenças de linguagem entre os dois eram mais acentuadas e perceptíveis: a proporção, as limitações e potencialidades do videoteipe, enquadramentos e iluminação adequados para os televisores. O conteúdo e produção expressa e industrial da TV ocasionou uma abundância de obras, muitas delas ficaram perdidas no tempo e não recebem o privilégio de serem mantidas vivas (entende-se assistidas). As salas de cinema são comumente voltadas para a exibição do repertório de sua própria história, deixando de lado os trabalhos feitos para a televisão, veículo cuja a difusão, organização industrial e mercadológica é drasticamente diferente da dinâmica do cinema, o que dificulta a frequência de sua difusão para além de suas exibições originais - e as vezes únicas.

É visando dar espaço a rememoração dessas produções audiovisuais erroneamente escanteadas e pouco exibidas que o CINUSP apresenta, de 29 de maio a 25 de junho a mostra Da telinha pra telona, com 17 programações, entre filmes, episódios, séries completas e algumas obras nunca antes exibidas em salas de cinema no Brasil. Trazendo clássicos conhecidos e pouco conhecidos da televisão mundial, visando dar ao público a experiência de ver, rever e conhecer essas obras em outro espaço de exibição, coletivo e imersivo.

De uma perspectiva mais formativa da história dos telefilmes, trouxemos obras canônicas como Cathy Come Home, um dos primeiros filmes do cineasta britânico Ken Loach, que foi exibido em 1966 como parte do programa semanal da BBC The Wednesday Play e ficou marcado na história por seus planos fechados, realismo social cru e um ritmo quase claustrofóbico para o espectador. No mesmo ano, foi transmitido na rede estatal francesa ORTF, o filme O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV, que inaugurou a carreira de Roberto Rossellini na televisão, uma fase pouco compreendida por ser radicalmente diferente de seu cinema. O filme já revela o que seria a ideologia televisiva de Rossellini, de que o novo veículo deveria ser usado principalmente para fins pedagógicos. Os enquadramentos, iluminação e ritmo do filme já exprimiam o que seria sua estética da TV. São marcantes as indumentárias elaboradas e também o uso de um distanciamento brechtiano - tirando da representação aquilo que parece óbvio, natural, e lançando sobre ela o espanto e a curiosidade. A sessão do dia 07/06 será acompanhada de um debate com a Profª Drª Esther Hamburger, do departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP.

Voltando para a televisão britânica, em 1975 foi transmitido, em horário nobre, na ITV (uma das poucas emissoras privadas do Reino Unido), The Naked Civil Servant é uma biografia corajosa de um pioneiro da causa gay no Reino Unido, Quentin Crisp, que no filme é interpretado visceralmente por John Hurt. Inserido em uma narração episódica que se diverte em sua própria forma, com intertítulos que contrapõe o que é visto.

Outro clássico que foi para além das telinhas (sendo reeditado para o cinema no ano seguinte de sua transmissão original), Cenas de um Casamento, dirigido por Ingmar Bergman, é uma obra que, curiosamente, se tornou um clássico dos dois veículos. Se destacando por utilizar da intimidade que o dispositivo televisivo carrega, ele retrata as particularidades de um lar, questionando profundamente os ideais da instituição do casamento e os valores morais da época. A minissérie em 6 episódios será exibida na íntegra em uma maratona no dia 31/05, quarta-feira.

O ambiente doméstico é retratado, de forma muito distinta, em outro filme da programação: Personal Problems, dirigido pelo cineasta e dramaturgo estadunidense Bill Gunn. Concebido como uma “novela experimental”, o filme é um épico familiar centrado em uma família negra do Harlem. As limitações dos aparatos técnicos do veículo televisivo proporcionaram um experimentalismo do videoteipe, suas texturas, seus longos planos, zooms. Tudo isso conjugado com uma narrativa que às vezes beira o documentário e logo explana sua ficcionalidade, dotada de dramaticidade potente típica de um melodrama. Uma oportunidade única de ver em uma sala de cinema uma obra ímpar dos anos 80 e nunca exibida no Brasil.

Outra obra inédita presente em nossa programação é a minissérie soviética de dois episódios Um Milagre Ordinário, transmitida em 1978 e que traz, de forma leve e cômica, o gênero fantasia e o musical de maneira excêntrica. Adaptação de uma peça do dramaturgo soviético Evgeny Schwartz, a minissérie é dotada, tanto em sua cenografia como em seus figurinos, de uma artificialidade de estúdio característica de um imaginário televisivo.

Ainda no leste europeu, mas agora na Polônia, surge no ano de 1989 uma série em 10 partes que se tornou um marco da televisão mundial. Decálogo, dirigido por Krzysztof Kieślowski, é uma adaptação dos dez mandamentos da tradição judaico-cristã, em que cada episódio é uma ficcionalização de cada um deles. Explorando a aplicação dos princípios da moralidade cristã em um contexto contemporâneo, revela diversas contradições morais e existenciais enfrentadas pelos habitantes de um complexo residencial em Varsóvia. Os episódios exibidos serão "Decálogo V - Não Matarás" e "Decálogo VI - Não cometerás adultério", exemplos radicais da abordagem do diretor.

Ao norte, na Escandinávia, surge em 1994 a minissérie O Reino, produzida e dirigida por Lars von Trier. A série, que se passa em um estranho hospital, explora o absurdo no ordinário e apresenta um sobrenatural escrachado. Sua forma lembra muito o movimento que mais tarde iria se denominar Dogma 95, elaborado pelo próprio Lars von Trier e outros cineastas. A obra se tornou icônica, sendo sempre listada entre as melhores da história da TV mundial.

Nessas listas, uma série sempre estará presente, Twin Peaks. A terceira temporada, porém, além de presente nas listas que dizem respeito à televisão, aparece também como um dos melhores filmes de todos os tempos, inclusive na última lista elaborada pela revista "Sight and Sound". Em 1991, a segunda temporada acaba com uma enigmática  despedida de Laura Palmer: ‘te vejo em 25 anos’. 26 anos depois, em 2017, o reencontro é ainda mais bizarro que a despedida. Pensado como um filme de 15 horas por um diretor que não difere televisão e cinema, a terceira temporada brinca com a ideia de um ‘reboot’, endêmico na televisão e no cinema contemporâneos,subvertendo a nostalgia. Ao invés de entregar aos fãs das primeiras duas temporadas tudo o que queriam, David Lynch e Mark Frost frustram expectativas e vão ainda mais a fundo no caráter surreal e fantasioso da série. Se na década de 90, Twin Peaks foi uma das primeiras séries a trazer um caráter cinematográfico à televisão, em 2017, a série é uma das primeiras a trazer episódios completamente experimentais. O célebre episódio 8 da terceira temporada brinca com a textura do cinema digital e explora um formato não-narrativo de exposição.  

A televisão, durante sua história, sempre foi um grande receptáculo para experimentação. Suas facilidades de produção, geralmente com baixos orçamentos mas com veiculação rápida e muitas vezes única, favoreceu a inserção de diversos autores que desejavam experimentar e testar o modelo televisivo. É o caso do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, que nos anos 60, 70 e 80 escreveu peças curtas para a televisão alemã e britânica, chegando a dirigir partes delas, especialmente as que foram transmitidas no país germânico. Marcadas pelo minimalismo formal, nessas narrativas do encerramento as personagens falam e se movimentam em giros em falso, presas em loopings sem destino, condenadas à impossibilidade de se encontrarem, mesmo em pensamento, com seu passado ou futuro. Três delas serão exibidas na sessão especial BECKETT PARA TV, que será seguida de um debate com o Professor Doutor Fábio Souza da FFLCH-USP.

Já no caso de Chantal Akerman, de carreira sólida nos cinemas, teve sua experiência na televisão por meio do filme Retrato de uma jovem garota no final dos anos 60, em Bruxelas, episódio da série francesa Tous les garçons et les filles de leur âge, que reuniu diversas cineastas francófonas para dirigir, cada uma, um pequeno telefilme. No caso de Retrato, Chantal propõe um retrato quase autobiográfico de sua vida no final do século 60, focando no ponto de vista da juventude, especialmente feminina. o filme será acompanhado de um episódio da série francesa Cinéma, de notre Temps que trata da obra da cineasta belga. As duas obras serão exibidas nas sessões especiais CHANTAL AKERMAN NA TV.

Outro autor que esteve muito presente na televisão foi Rainer Werner Fassbinder, que em 1980 dirigiu o que seria a sua obra televisiva mais significativa: Berlin Alexanderplatz. A série de 13 episódios acompanha Franz Biberkopf, que é libertado da prisão e promete se endireitar. No entanto, ele logo se vê envolvido no submundo do crime da cidade. A série é ousada formalmente e se notabilizou no mundo inteiro pelo seu realismo, tanto na linguagem chula dos personagens como em suas cenas de sexo. Foi mais uma das obras controversas de Fassbinder, autor que soube explorar muito bem as potencialidades do aparato televisivo durante toda a sua carreira. Na mostra, será exibido o primeiro episódio da série, seguido de um debate com o Professor Christian Ernst.

Já em solo brasileiro, é inegável a influência que a televisão tem no público e cultura do país, a TV se constituiu como uma indústria bem mais elaborada e com um alcance maior do que o cinema brasileiro. Mas não só de telenovelas (nosso principal produto audiovisual) se compõe a ficção nas telinhas brasileiras, muitos diretores, vez ou outra, gozaram de uma liberdade criativa relativamente rara nas maiores emissoras do país, um deles foi Luís Fernando Carvalho que em 2008 produziu Capitu, minissérie transmitida pela Globo que se tornou um sucesso, adaptando o romance de Machado de Assis usando elementos estéticos do teatro e do circo. Serão exibidos os dois primeiros episódios da obra.

A mostra também conta com duas animações, gênero que encontrou terreno fértil na televisão. O Segredo Além do Jardim é uma série recente que, em um tom macabro e melancólico e com apenas 10 episódios, conseguiu atrair um público fiel, tornando-se aclamada. Também está presente na programação os 5 primeiros episódios de um dos animes japoneses mais importantes, Cowboy Bebop, que explora temas como existencialismo, degradação ambiental e solidão, ao mesmo tempo que incorpora o jazz e a ficção científica no universo criado.

Por fim, procurando resgatar a experiência de ver televisão, o CINUSP experimenta montar sua grade televisiva própria, a TV CINUSP, que traz seriados selecionados pela curadoria e os coloca dentro da grande tela do cinema. Inspirando-se nas programações de conteúdos leves e humorados do horário da tarde, a sessão Senta Que Lá Vem Risada passeia desde as primeiras sitcoms de sucesso como I Love Lucy até obras contemporâneas de comédia como Atlanta. Já a sessão "O Mistério Está no Ar" traz a tona as obras televisivas que apelam para o misterioso e o fantástico, trazendo alguns dos seriados mais clássicos desse gênero, que reverberam até hoje na indústria audiovisual, como Twilight Zone e Doctor Who.

A seleta de obras televisivas presentes na mostra Da Telinha pra Telona visa dar o espaço da sala de cinema enquanto ferramenta de difusão e memória de um veículo que detém uma imensa parcela da produção audiovisual mundial e muitas vezes é escanteado ou pouco exibido. As diferenças mercadológicas e industriais entre o cinema e a televisão talvez sejam as mais marcantes entre os dois meios. A rapidez de produção e de veiculação das obras feitas para a televisão fazem com que tais obras não gozem de uma recuperação e difusão constante, como acontece com o cinema. O CINUSP convida a todos a visitarem essas obras, mantendo-as vivas, seja na telinha, seja na telona.

Boas sessões