ÓLEO SOBRE TELA


apresenta:

Óleo Sobre Tela

de  26 de Junho a 16 de Julho

 

No seu ensaio sobre “cinema impuro”, André Bazin discute a submissão da sétima arte às suas antecessoras. Tratando da questão de adaptações literárias, surge a pergunta: “Estaria o cinema prestes a se tornar uma arte subordinada e dependente de alguma arte tradicional?”. No entanto, submeter-se ou não à tradição de outras artes não é o ponto final de sua provocação, pois a influência entre meios artísticos, como o crítico explicita, está longe de ser uma exclusividade ou um problema do cinema. Essa relação nos interessa pois transfigura os temas e as técnicas da nova arte, exibida em outra tela. 

A condição histórica inerente às várias manifestações culturais confirma o quão comum é que uma nova forma se apoie em outras já consolidadas para se firmar. Frente a isso, o cinema não é diferente. Entre os dias 26 de junho e 16 de julho, o CINUSP evidencia os encontros entre pintura e cinema com a mostra “Óleo Sobre Tela”.

Um ponto de partida conveniente para essa análise é a forma com que técnicas e abordagens visuais utilizadas na pintura podem ser adaptadas e incorporadas à linguagem cinematográfica, resultando em arranjos de imagens esteticamente estimulantes. O Gabinete do Dr. Caligari incorpora traços da corrente expressionista, como a distorção de figuras e contornos, na sua iluminação e cenografia, sendo um grande representante dessa tendência no cinema alemão. Também é possível perceber um raciocínio pautado pela pintura e outras artes visuais nos filmes de Akira Kurosawa. O diretor adota o método de pintar seus próprios storyboards, o que resulta em visuais impactantes em termos de composição e coloração, como podemos observar em Sonhos

Indo além da incorporação visual na fotografia, alguns filmes também procuram abordar em suas narrativas os temas que suas inspirações retratam. Em Barry Lyndon, por exemplo, Kubrick se inspira em obras que ilustram pobres e nobres, para contar e enfatizar a história de um homem escalando as classes sociais britânicas no século XVIII. Agnès Varda e Jean Renoir, em contrapartida, utilizam do estilo impressionista francês em As Duas Faces da Felicidade e Um Dia no Campo; a primeira para subverter e criticar valores como o “retorno à vida tradicional” e a “tranquilidade do interior” que refletem a submissão feminina, e o segundo como um tributo a Pierre-Auguste Renoir, seu pai e grande representante do impressionismo na pintura.

Uma vez contemplados os aspectos visuais e temáticos de uma obra, alguns diretores se interessam também pelos autores das peças que os inspiram. A partir disso, criam-se filmes que juntam esses três fatores, resultando em biografias contaminadas pelo estilo visual de seus protagonistas. É o caso de Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky e Caravaggio, de Derek Jarman, que se empenham em retratar o artista em questão, explorando a relação de suas inspirações e construções poéticas com a sociedade e a concepção de arte de suas épocas.

Outro ponto relevante é o deslumbramento, que passa a infiltrar essa mistura e compor os contornos de uma importante relação entre apreciação de obras de arte e os recursos narrativos da forma cinematográfica. O filme de Raúl Ruiz, A Hipótese do Quadro Roubado, apresenta a perspectiva do observador de uma pintura em meio à tentativa de adentrar seu mundo de significados, envoltos no enigma de sua presença. Já em A Cor da Romã, Parajanov busca pela poesia no passado, ao evocar elementos da vida e da obra do trovador armênio Sayat Nova a partir da tradição de iluminuras, ilustrações em manuscritos medievais, criando uma linguagem visual própria para contar uma “biografia da vida interior” do artista e de seu tempo.

Não obstante, a forma cinematográfica vai ganhando poder sobre a imagem de natureza pictórica e mais autores vão buscando maneiras de subvertê-la. Alguns enxergam a mistura de diversos meios como uma possibilidade de arranjo interessante. Em Filme de Amor, por exemplo, o cineasta brasileiro Julio Bressane reúne influências das pinturas de Balthus e Botticelli com elementos teatrais para lançar uma releitura do mito grego das três graças. Já em Paixão, de Jean Luc-Godard, a crise de uma personagem em busca da iluminação perfeita para sua obra se torna palco e matéria prima da tensão entre preservação e o esquecimento das obras que exercem influência sobre o presente. O conjunto de pinturas que formam o imaginário do filme é abordado por meio de tableaux vivants de Goya, Delacroix e Rembrandt. 

Esse conceito de recriação de pinturas criou fortes raízes dentro do audiovisual, sendo muito comum ver uma ou outra referência explícita às peças específicas em diversas produções. Entretanto, filmes como Shirley: Visões da Realidade levam essa ideia ao máximo, reproduzindo minuciosamente os quadros de Edward Hopper. O diretor polonês Lech Majewski também põe isso em prática em O Moinho e a Cruz, chegando ao ponto de fragmentar o quadro em múltiplas situações para explorar os sentidos e o processo criativo de Pieter Bruegel, pintor de “Procissão do Calvário”. 

Colocando uma atenção maior na construção progressiva da obra, vê-se no cinema uma possibilidade de representação fiel da temporalidade constitutiva de tal processo, afinal, é uma arte que naturalmente lida com o tempo. Tendo isso em mente, William Dieterle retrata o processo de inspiração e realização de um pintor em um dos mais intrigantes filmes de sua carreira, O Retrato de Jeannie, cujo foco está na composição do retrato de uma musa misteriosa. O longa conta com o uso de cenários pintados e sobreposição da tela de pintura sobre a tela de cinema para dar vida ao que provoca o artista a pintar. Indo para um lado mais documental desse processo, em O Mistério de Picasso, Clouzot tenta capturar as operações internas criativas do grande pintor italiano, mas acaba por gravar algo ainda mais interessante, as mutações de uma mesma pintura até chegar em seu ponto final. Assim, pelo cinema, é possível entender a pintura como algo vivo, mutável. 

Buscando de maneira radical representar a pintura em movimento, o filme de animação Com Amor, Van Gogh utiliza uma lógica de “24 pinturas por segundo” para contar uma história exatamente no estilo visual do renomado pintor. Tendo demorado 10 anos para ser lançado e com o trabalho de mais de 100 artistas, essa grande produção é aqui colocada em contraponto com o trabalho artesanal do diretor experimental Stan Brakhage, que, interessado nas possibilidades da película, literalmente pinta sobre o filme por 6 anos para fazer o seu curta The Dante Quartet, onde as qualidades poéticas, visuais e sensoriais da pintura e do cinema se convergem na técnica e no resultado da obra.   

Seja por meio da recriação de quadros, da experimentação estética ou do retrato de artistas que formam um cânone, a influência que a pintura exerce na sétima arte deixa sua marca sobre a forma e o conteúdo daquilo que assistimos. E com isso convidamos o público para apreciar o encontro de óleo - entre tantos outros materiais - sobre a grande tela. 

 

Boas sessões!