FACES DO ABISMO


Uma das características do que conhecemos como cinema clássico é a sua narrativa estruturada: com uma introdução, conflito e principalmente um fim conclusivo, seja de forma feliz ou trágica. Porém, diversos cineastas renomados, em diferentes momentos e movimentos da história do cinema, subverteram essa lógica.

Na mostra Faces do Abismo essa falta de resolução é feita de maneira específica: ao focalizar suas narrativas em personagens que mergulham em um abismo, estas são confrontadas com problemas que não são capazes de solucionar. Ao se depararem com o vazio existencial  – em um mundo onde fugir é inútil ou impossível – as personagens permanecem longamente em uma questão, ou derivam a esmo de uma situação a outra, provocando nos espectadores um incômodo ou até inconformismo diante do destino inconclusivo das narrativas apresentadas.

Sobra às personagens encarar a violência, o terror e um mundo sem histórias resolutas com uma expressão esvaziada. Sobra também uma sensação de impotência e  um senso de desimportância frente a grandiosidade do mundo que encaram. O abismo, um limite na terra que demarca até onde pode-se caminhar, é também limite narrativo que os diretores estabelecem para as histórias que serão contadas. Cabe tanto às personagens quanto ao público encarar essas histórias deformadas e compreender que o objetivo delas talvez seja exatamente não nos conduzir a solução nenhuma, mas sim nos provocar desconforto e angústia a partir das situações representadas.

Os cenários são variados: uma cidade completamente destruída pós guerra, uma natureza bela mas inóspita, uma cidade em vias de industrialização, contudo o abismo que encaramos nas faces – vazias, distantes e desoladas – das personagens, estará sempre presente. Assim, a  nova mostra do Cinusp, de 7 a 27 de agosto, apresenta um panorama de filmes que trabalham tanto formalmente, quanto sensivelmente essa temática.

O uso de planos longos, a falta de ação, os grandes silêncios e o vagar das personagens em errância são características fortes das obras escolhidas. A maneira de estruturar a sequência dos acontecimentos com mais despropósito e derivações e menos clareza de objetivo, também. Este é o caso de A Aventura, de Michelangelo Antonioni, que nos dá – logo no início do filme – todos os elementos para que imaginemos que sua narrativa terá começo, meio e fim. Um homem leva uma mulher para uma ilha e ela desaparece. O que poderia virar um filme investigativo, com resoluções claras, procede em sentido inverso: a procura da mulher deixa de ser algo central para a trama e as personagens começam a vagar pela ilha quase sem rumo, a ter conversas despretensiosas, onde tudo dilui-se de maneira desconcertante.

Em Casa de Lava, Pedro Costa faz movimento semelhante ao apresentar a jornada de uma enfermeira, que transporta um homem em coma para Cabo Verde. Em diferentes faces do que poderia ser a morte, Mariana, uma mulher quase sem identidade, perde-se mais e mais em meio à paisagens vulcânicas. Personagens em crise identitária são aspectos retratados no contemporâneo O Fim da Viagem, o Começo de Tudo, de Kiyoshi Kurosawa, e em Os Encontros de Anna, de Chantal Akerman. Enquanto na obra japonesa temos uma personagem que perde o sentido de seus propósitos, acompanhamos na outra uma protagonista que se encontra com diferentes pessoas com diferentes histórias, porém a mesma – é quase muda e não consegue se fixar em nenhum lugar – não possui história própria.

Em A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel, temos como personagem central uma mulher silenciosa e distanciada. Contudo, esta aparente tristeza que se conduz a um abismo ao longo da obra, possui uma causa explícita, que diverge dos outros da mostra: Vero atropela algo e – após este evento trágico em sua vida – muda completamente. Em Através do Espelho, que faz parte da trilogia chamada posteriormente por Ingmar Bergman de trilogia do silêncio, retrata o abismo e o vazio existencial também a partir de uma causa clara: Karin volta do hospital psiquiátrico e tenta encontrar um sentido para o vazio em Deus, mas não tem resposta aos seus chamados.  

O diálogo com a religião é presente em algumas obras da mostra, mas é profundamente abordado em O Cavalo de Turim, de Béla Tarr. Inspirado no Gênesis, o diretor produz uma alegoria que se passa em 6 dias, a mesma quantidade de dias em que Deus dá, através do vento da criação, forma ao mundo. No filme, contudo, acontece movimento inverso: um vento incessante não para de bater em uma casa de campina, onde moram um pai e uma filha. Lentamente suas figuras vão perdendo sua delimitação misturadas à natureza, como se Deus fosse retirando as formas que deu às coisas e eliminasse até sua primeira criação: a luz. O abismo aqui se dá em um mundo sem Deus, onde até a natureza humana perde sua forma e se revela em sua insignificância.

Apesar do abismo, existe um desejo em relação ao desconhecido que movimenta as personagens em alguma espécie de busca. Em Nostalgia, de Andrei Tarkovski, um poeta russo vaga pela Itália pesquisando a obra de um compositor. Enquanto percorre esse espaço estranho, as saudades que sente de sua terra natal, assim como as lembranças de sua infância, se conectam às palavras de um pregador local, que o alerta sobre a decadência do mundo. Em meio às suas angústias, buscando por si onde jamais poderia se encontrar, o vazio do mundo e de si próprio se coloca diante dele. O voltar para casa é tema de Nostos, O retorno, que conta a história do retorno de Ulisses para Tróia. Vemos apenas fragmentos que não contam exatamente a narrativa já conhecida da Odisseia. Novamente, o abismo é materialmente revelado em um mundo natural exterior: grandioso, vazio e aterrorizante. 

Mas mais aterrorizante que a natureza, é um mundo deteriorado e obliterado pelo homem. A obra neo-realista italiana Alemanha Ano Zero, de Roberto Rossellini , é um exemplo disto: uma criança vaga pelas ruas de uma Berlim completamente destruída após a segunda guerra mundial. Esse menino encara com os próprios olhos a força com que a guerra destrói toda a narrativa conhecida: a história de sua própria família e a história de seu país. Ao mesmo tempo, o espectador encara um filme incapaz de criar qualquer narrativa que não esteja fadada à uma errância semelhante à do menino.

Esse abismo social  também é representado em São Paulo Sociedade Anônima, onde a personagem principal se situa politicamente em um momento muito específico da história brasileira: o desenvolvimentismo empreendido entre os anos cinquenta e sessenta.  O Brasil, em seu sonho de se fazer moderno, não pode escapar do seu subdesenvolvimento. Carlos não pode escapar de São Paulo, então vaga, o filme inteiro, pelas ruas da cidade tentando achar alguma forma de se libertar, sem sucesso.

Em contraponto, Os Maridos, de John Cassavetes, é um bom exemplo de uma narrativa que se dilui sem motivo social aparente. O que parece à primeira vista uma situação estável, onde três amigos casados vivem uma vida no subúrbio, logo revela-se a verdadeira face desses personagens: homens em luto, com vidas infelizes e sem sentido. Cenas longas de embriaguez isolam as personagens dos seus contextos e de seus ambientes e retratam seres diminuídos e deformados por seus complexos, sem raízes, e sem outra ligação com o mundo exterior a não ser o desgosto e a náusea que este provoca neles. 

   A partir dessa proposta, que se utiliza tanto de uma visão formal quanto de uma visão sensível, o Cinusp convida seu público para que encare o abismo transmitido pela ótica desses grandes cineastas nas faces de seus personagens. As narrativas disformes fazem parte de um mundo sem forma, e cabe ao criador e ao espectador que lidem com o que sobra das histórias quando as narrativas encadeadas não cabem mais neste mundo que não funciona, e talvez nunca tenha funcionado, de maneira encadeada.

 

 

Boas sessões.