CASA DOS PRAZERES


No jardim das musas, a voz daquelas que trabalham com o prazer custa a ser apagada. O cinema de diversas partes do mundo foca nas figuras e nos processos ligados ao trabalho sexual, e com isso faz parte de uma longa tradição de investigação e investimento estético que produziu grandes obras, atravessando fronteiras e temporalidades. Diante das câmeras e nas salas de cinema de muitos países, em diferentes épocas, o trabalho se uniu ao sexo e produziu um rico centro de conflitos éticos, econômicos e morais, que reverbera em um conjunto de filmes, carreiras e intenso debates políticos. Partindo de tais dicotomias, o CINUSP apresenta a mostra CASA DOS PRAZERES entre os dias 25 de setembro e 15 de outubro, com 13 obras de intensa exploração dos vínculos entre o trabalho, o sexo e o cinema ao longo da história. 

A disposição deste trabalho ao longo de lendas, mitos, centros urbanos e periferias, no coração ou nas margens da civilização - e do que se julga civilizado -, foi e continua sendo uma das grandes provocações ao olhar crítico de artistas e teóricos engajados com o social. Em AOpção, ou As Rosas da Estrada, a visceralidade do mestre do cinema da Boca do Lixo Ozualdo Candeias captura personagens em meio a um fluxo migratório que reflete múltiplas dimensões do país, e consegue expor o desespero existencial de lavradoras que fogem em direção à cidade, por meio da prostituição. Junto ao longa de Candeias, será exibido o curta Mulheres da Boca, onde as diretoras Inês Castilho e Cida Aidar criam uma visão direta do dia-a-dia de mulheres que se prostituem na Boca do Lixo, espaço dividido nos anos 1970 e 1980 entre o cinema, a prostituição e a criminalidade. 

Também voltado para um exame das desigualdades sociais, o cinema de Kenji Mizoguchi se destaca no debate público japonês a respeito da prostituição. Em Rua da Vergonha o diretor evidencia o espaço contraditório do bordel: repleto de mulheres bem vestidas e maquiadas, mas pobres e marginalizadas em um Japão devastado pela guerra. Uma sobreposição das dimensões pessoais e públicas da vida dessas trabalhadoras nos leva ao modo com que Paul Vecchiali figura o sofrimento da jovem Rosa, em Rosa la Rose, Garota de Programa. No choque entre a profissão e um grande amor, a “garota pública” encontra as amarras de um destino que coloca sua vida em risco: a relação inescapável com seu cafetão. Na Itália de Anna Magnani, Mamma Roma também conta a trágica tentativa de abandonar a profissão, cruelmente interrompida por relações sociais imobilizantes. 

O tema ocupa um centro caloroso de debate, protesto e contradição, e por isso provoca pessoas das mais diversas correntes políticas e filosóficas em torno de si. Macho Dancer, de Lino Brocka, exibe parte das Filipinas tomada pela sensualidade masculina e movida por serviços sexuais que representam a sobrevivência de famílias pobres no campo. O protagonista, abandonado pelo amante americano, consegue um emprego na casa de strippers onde conhece a intimidade entre trabalhadores. O filme, porém, foi subjugado pela forte censura acerca do tema e teve de ser contrabandeado pelo seu autor para permanecer intacto, sinal da intensa ação política que circunda os problemas ali presentes. 

A história trágica de jovens mulheres que confrontam a figura predatória de seus empregadores nos leva a outra abordagem: a do cinema de época, focado em retratar a historicidade das casas de prostituição que abrigaram tais narrativas. L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância destaca requintes, luxos e extravagâncias da França na virada entre os séculos XIX e XX, se valendo da perspectiva de quem trabalhou - e sofreu - com o prazer da aristocracia. Em outra parte do mundo, Hou Hsiao-Hsien produz uma obra-prima sobre o cotidiano das trabalhadoras de uma casa das flores, bordel de alta classe nos anos finais da China Imperial. Flores de Xangai se passa entre lindos planos de longa duração, cuidadosamente produzidos no ambiente escuro e íntimo que suas personagens vivenciam nesse momento histórico dominado por ópio e requinte.  

Ainda no universo dos prostíbulos de luxo, Lizzie Borden filma o sexo como quem acompanha um trabalho qualquer. As Profissionais do Sonho não é orientado na opulência da situação, mas sim na exposição das relações trabalhistas, com um discurso materialista. A troca de serviços, nesta obra, ressalta o que o sexo pode ter de mais comum com outras atividades remuneradas, e nos pergunta: você já ouviu falar da mais-valia? Enquanto algumas trabalham para a classe mais alta, outras encontram seu sustento em meio ao caos e à precariedade das ruas. Essas figuras ocupam a cidade com sua presença extravagante, muitas vezes vulnerável e criminalizada, e são o centro de filmes como Tangerina. Com seu estilo veloz, inquieto e super colorido, Sean Baker captura duas grandes amigas, que enquanto se prostituem em uma zona dominada por mulheres trans, se lançam em direção aos seus sonhos artísticos e desejos mais insanos de vingança. Outras duas grandes amigas, a caminho de outra parte do mundo, vivem uma difícil viagem a bordo de O Expresso de Xangai. Com a direção de Josef Von Sternberg, Marlene Dietrich exibe toda a experiência de uma atriz cuja carreira está centrada no papel de prostitutas e dançarinas de cabaré.

 

Para além da experimentação em relação aos modos de produzir sua verdade, importantes obras da nouvelle vague francesa e da nuberu bagu japonesa fazem do trabalho sexual seu tema, pelo qual podem renovar e inventar formas cinematográficas provocadoras. Durante a década de 1960, em meio à ebulição política e aos protestos estudantis, Jean Luc-Godard e Toshio Matsumoto apontaram suas câmeras e princípios formais inovadores à prostituição. Com O Funeral das Rosas, Matsumoto traz à tela um espetáculo de inventividade e cultura pop, adaptando livremente a narrativa edipiana para o contexto de prostitutas, mulheres trans e vida noturna do Japão pós-guerra. Já em Viver a Vida, Godard esquematiza o trabalho com o sexo a partir do retrato de uma atriz que progressivamente se vê envolvida pela prostituição.

Por fim, enfatizamos que essa é uma casa de muitos nomes: zona, puteiro, cabaré, bordel, distrito das luzes vermelhas. Em cada uma há problemas distintos, trocas de diferentes valores, posições opostas em relação ao mundo, que ou as proíbe, ou as explora, e uma partilha dos amores, das dores, e das lutas de quem trabalha. Existem há séculos e são popularmente reconhecidas como parte da “profissão mais antiga do mundo”. Promovendo ao público o contato com uma breve seleção de filmes significativos para o tema, esperamos recebê-los em nossa Casa dos Prazeres, sempre pública e gratuita. 

 

Boas sessões!