UMA NOITE NÃO É NADA


Durante o dia conseguimos, mesmo sem um relógio, sentir vagamente a passagem do tempo. A claridade e a temperatura mudam com o passar das horas e o movimento do Sol torna fácil sentir se é manhã, tarde ou fim de tarde. A noite, por outro lado, fornece menos sinais. Após o escurecer, as trevas se estendem numa uniformidade perturbadora, em que a sensação da passagem do tempo se turva. Só com os primeiros raios da manhã podemos concluir em que horas estamos. Sensação semelhante ocorre ao espectador atingido pelo acender das luzes numa sala de cinema ao fim da sessão. Após ficar recluso na escuridão, perdido no tempo diegético exibido, ele acorda de volta para o ritmo do dia a dia. 

Esse deslocamento temporal realizado pelo cinema pode corresponder à condensação de dias, anos, ou vidas inteiras em algumas horas. Mas o paralelo com o tempo noturno se reforça quando os filmes escolhem representar os eventos de uma noite. O espectador então mergulha na sala escura para experimentar a eternidade fugidia das narrativas de personagens presos entre o breu silencioso, a vigília dos apartamentos acesos e a pulsação das luzes das ruas. A mostra do CINUSP Uma Noite Não É Nada contará, entre os dias 05 e 22 de dezembro, as histórias passadas nessas horas insones, que por mais efêmeras que sejam, podem dizer muito sobre a vida de seus habitantes notívagos. 

Acordados enquanto a maioria dorme, os protagonistas desses filmes estão diante de um mundo fora do ordinário, em que as normas diurnas se tornam difusas e coisas incomuns podem acontecer. É isso que presencia a protagonista de Simone Barbès, ou A Virtude, de Marie-Claude Treilhou, ao observar solitária os incidentes de um clube lésbico banhado por luz vermelha na madrugada de Paris. Diferente dela, que observa, Paul, o protagonista de Depois de Horas, é sugado por esse caos noturno. Nessa comédia de erros de Martin Scorsese, o que era para ser apenas uma noitada se torna uma sucessão inesgotável de absurdos. Assim como em Bom Comportamento, em que um jovem assaltante tenta resgatar da polícia seu cúmplice - e irmão mais novo - após um roubo mal sucedido. Embora não tão bem intencionado quanto o protagonista de Depois das Horas, o filme presta uma homenagem ao clássico de Scorsese, com uma cidade que a cada esquina se joga contra os personagens.

A impressão que ficamos ao ver esses filmes é que, ao cair do dia, uma peça de dominó foi empurrada e a última só vai cair quando o sol raiar. No longa Até a Meia Noite, o mesmo ocorre com Koji, um músico de jazz que sai para fumar um cigarro entre apresentações e acaba envolvido num assassinato. O ritmo acelerado da música mistura-se com as luzes ofuscantes de Tóquio para criar uma atmosfera não só claustrofóbica mas também frenética. A trilha musical do clássico noir Ascensor Para o Cadafalso é um ótimo exemplo de como há algo intrinsecamente noturno no jazz. A trilha improvisada de Miles Davis carrega em si o andar perdido dos protagonistas, vítimas de uma noite infeliz. Uma delas, Florence, interpretada por Jeanne Moreau em um dos seus papéis mais icônicos, vaga pela noite parisiense a esmo após uma série de infortúnios, tendo apenas o choro do trompete de Davis para embalar seus pensamentos.

Enquanto uns acham na noite o desvio de suas rotas planejadas, outros tem um objetivo claro a cumprir entre as horas escuras. É o encontro de personagens com esses dois perfis que caracteriza a tensão de Colateral, de Michael Mann. Enquanto o assassino Vincent tem de cumprir sem escrúpulos suas execuções, o taxista contratado por ele, Max, deve se adaptar e sobreviver ao que esperava ser apenas um trabalho e se tornou um jogo de vida ou morte. Essa radicalidade do perigo e da violência que assolam o fim do dia das personagens também foi largamente explorada pelo cineasta John Carpenter. É por isso que a mostra, no ensejo do tema noturno, contará com o Noitão John Carpenter, em que serão exibidos O Enigma de Outro Mundo, Assalto à 13ª DP, Halloween, Fuga de Nova Iorque e A Bruma Assassina, todos em cópias em 4K. 

Se as ruas estão tomadas de ameaças e más intenções, talvez seja melhor ficar em casa. Mas longe do frenesi exterior, os ambientes domésticos e privados podem ser prenhes de outro tipo de sofrimento, a angústia. Esse é o caso de A Noite, de Michelangelo Antonioni, um filme em que suportar a passagem do tempo é um desafio para o casal protagonista. Tentando em vão achar, em encontros efêmeros de uma festa, a solução para seu relacionamento em crise. Enquanto o dia não raiar, eles não conseguem fugir desse vazio amoroso e existencial. Já em Festa, de Ugo Giorgetti, a clausura noturna é mais cômica e coletiva. Os três personagens estão presos na sala de espera onde aguardam serem chamados para entreter a festa que ocorre no andar de cima. Aqui há uma fronteira entre a noite como evento, lugar dos convivas ricos da festa, e noite como espera, a qual habitam os músicos. Mas quando casais são confrontados com essa mesma clausura noturna, o resultado é um filme explosivo. Em Eu Sei Que Vou Te Amar, uma casa moderna se torna fundo de uma discussão fervorosa entre um casal recém-separado. Jabor complementa a simplicidade dessa premissa com uma turbulenta exuberância visual e textual, cuja dramaticidade se assegura na intensa performance de Fernanda Torres, premiada em Cannes.

Quem Tem Medo de Virginia Woolf? também rende prêmios para sua protagonista, Elizabeth Taylor, em uma atuação marcante que faz essa adaptação teatral se firmar como um clássico do cinema. A diva americana interpreta uma esposa que, junto de seu marido, recebe um casal de jovens em casa para uma noite de drinks que rapidamente é tomada pela animosidade e complexidade de seus relacionamentos em crise. Já em Os Rapazes da Banda, mais uma festa que tinha de tudo para dar certo é arruinada, dessa vez, pela presença de um convidado inesperado: o medo de ser o que se é. Também baseado num texto teatral, um sucesso de bilheteria off-Broadway, o longa se passa em Nova York no início dos anos 70, numa festa em que um grupo de amigos gays são confrontados pela presença imprevista de um homofóbico.

Os “filmes de noite” também podem apresentar situações críticas e únicas para expor tudo o que havia de oculto na fachada de normalidade da rotina diurna. Tijolo e Espelho é um filme que coloca seu protagonista em uma das noites difíceis da sua vida e, assim, revela traços profundos de sua alma. No longa, um taxista encontra um bebê abandonado no banco de trás de seu carro. A fotografia extremamente contrastada espelha a realidade de um Irã que também é repleto de escuridão, mas que encontra uma luz sem igual em crianças que teimam em nascer e sorrir. Igualmente dramático, Mikey e Nicky apresenta dois amigos tendo de lidar com a paranoia de uma perseguição. As atuações marcantes dos amigos da vida real Peter Falk e John Cassavetes trazem à tona mágoas antigas e ressentimentos dos personagens, ficando claro que este é um filme não sobre a vida do crime, como aparenta ser no começo, mas sim sobre amizades e masculinidade. É possível, no entanto, atingir o mesmo nível de profundidade de forma aparentemente oposta. As dezenas de fragmentos lunares de Toda Uma Noite duram alguns minutos, e trazem relances de vidas sobre as quais não sabemos quase nada. Porém, a diretora Chantal Akerman carrega de tamanha densidade essas pílulas dramáticas, que o efeito de cada uma é tão arrebatador quanto a impressão global que se cria na sua justaposição.

Adeus, Dragon Inn realiza justamente uma introspecção sobre esse tempo. Ming-Liang apresenta um cinema nos últimos 90 minutos da sua última sessão antes de fechar as portas para sempre. O tempo do filme exibido dita a minutagem do próprio filme que vemos. A duração aqui representa o fim. Do filme, do filme no filme, do cinema, e da noite. Mas também a História e seus fantasmas. Embora inevitável, a morte desse complexo de durações vem lentamente e com calma, assim como o amanhecer. 

Esses filmes, apesar de ocorrerem todos num intervalo de tempo definido, mostram a pluralidade não só da experiência humana mas também do cinema, que em poucas horas são capazes de contar histórias tão distintas. Assim, o CINUSP convida o público a adentrar o tempo suspenso da sala cinema para viver as horas extraordinárias dessas noites passageiras, mas decisivas. 

Boas sessões!