ÉPICOS


Batalhas imensas, jornadas repletas de desafios aparentemente intransponíveis, universos complexos e longos períodos de tempo, porém, acima de tudo, a sensação de sair do cinema extasiado, como se você tivesse visto algo enorme diante dos seus olhos. Entre os dias 29 de janeiro e 16 de fevereiro, o CINUSP apresenta a mostra ÉPICOS.

O termo épico tem suas origens atreladas a textos da Antiguidade que narravam grandes feitos heroicos em batalhas, aventuras e mitologias, tais como a Ilíada, epopeia que conta a história das guerras entre os gregos e troianos. Naturalmente, o cinema se apropriou do gênero, ampliando-o e, através de seu poder criativo, cravando no imaginário popular algumas referências audiovisuais para os épicos. Mais do que um subgênero cinematográfico, o épico se tornou uma sensação, um adjetivo para obras que deixam o espectador embasbacado, seja pelo escopo, pela longa jornada de seus personagens ou pelo teor histórico.

Em Assim Caminha a Humanidade, acompanhamos vários períodos da vida de uma família milionária texana, que encara mudanças econômicas e sociais de uma realidade com que estava acostumada. Entre o surgimento de novos rivais e a crescente rejeição por parte das novas gerações da família ao racismo, vemos as personagens amadurecerem tanto fisicamente, com rugas e cabelos brancos, quanto moralmente, questionando os próprios valores em que um dia acreditaram. Pássaros de Verão utiliza de artifício parecido: o filme colombiano narra a entrada de uma família indígena no mundo da produção de marijuana, buscando vender a droga para um grupo de recém-chegados estadunidenses que viajaram à Colômbia para divulgar propaganda anticomunista. Vemos a ascensão e a queda das pessoas envolvidas nesse universo, além disso, observamos o poder do sincretismo cultural em ação, com a identidade dos protagonistas sendo lentamente subjugada diante do imperialismo americano. 

O encontro entre filmes épicos e personagens históricos é inevitável, permitindo que a grandiosidade dos feitos de determinadas pessoas possa ser mitificada graças ao poder imaginativo do cinema, que se vale de todos seus recursos para exaltar e demonstrar sua importância descomunal. É o caso do longa-metragem Malcolm X. A cinebiografia de um dos maiores ativistas anti racismo da história apresenta o árduo caminho que Malcolm trilhou e todas as metamorfoses pelas quais ele teve que passar. O diretor Spike Lee analisa detalhadamente a vida de seu protagonista, assim como o tamanho de suas ações e seus impactos.

Outro exemplo de filme biográfico épico é Napoleão, de Abel Gance, que não apenas retrata uma das principais figuras políticas da história, mas, principalmente, marcou época pelo emprego de diversas inovações técnicas no campo cinematográfico. O filme de 1927 impressiona por suas novidades, indo desde um ritmo mais acelerado, com vários cortes e o uso de câmera na mão, até sequências em que a imagem se dilata para além dos limites da tela, utilizando três câmeras para expandir a visualização. A sua duração também é tão grandiosa quanto seu protagonista: o filme de mais de cinco horas - o que restou da versão original de dez horas - trata apenas das primeiras etapas da ascensão militar de Napoleão. Toda essa grandiosidade, tanto do personagem quanto da realização do filme, contribuem para a mitificação de um figura essencial no nascimento de um dos maiores impérios da história.

Enquanto o filme de Gance engrandece a história francesa, Sarraounia desconstrói o mito dos “desbravadores heróis colonizadores”. O filme do diretor mauritano Med Hondo nos apresenta a história real de Sarraounia Mangou, rainha poderosa e respeitada por lutar contra as missões coloniais francesas e proteger seu povo. No longa, acompanhamos a forma como a rainha desenvolve métodos de resistência aos invasores franceses através de costumes e morais locais. Nessa mensagem de união entre os povos colonizados, Hondo apresenta os poderes dos saberes autóctones e a força da rainha, além de expor as ações sanguinárias da colonização francesa na África, desmistificando os “heróis” colonizadores em um filme que conta com batalhas épicas de resistência.

Esse espírito do épico, calcado no uso de grandes recursos para contar histórias inspiradas em épocas do passado, ajudou a produzir obras memoráveis de diretores canônicos ao longo da história do cinema. É o caso de Spartacus, clássico de Stanley Kubrick, que relata a história de um homem escravizado que se revolta contra os escravagistas e decide organizar um exército em busca de por fim à escravidão no Império Romano. Em Kagemusha, de Akira Kurosawa, após um poderoso senhor feudal falecer, de acordo com suas ordens, seus súditos deverão encontrar um sósia para ele, a fim de evitar a queda de seu feudo. O sósia é um pobre ladrão, que sem nenhuma experiência, terá que comandar um exército de 25 mil samurais. Para além das similaridades narrativas, de ascensão de uma figura socialmente inferior a uma posição de poder — guardadas as diferenças de cada um —, ambos os filmes se aproximam através de seus cenários grandiosos e figurinos suntuosos, além do enorme número de personagens em cenas de batalhas, garantindo uma escala monumental a essas histórias.

Os épicos são também capazes de traduzir crenças e elementos de uma cultura para uma história. Baseado numa narrativa dos Bamana, grupo étnico da África Ocidental, A Luz, de Souleymane Cissé, acompanha um jovem com poderes mágicos que parte numa jornada em busca do tio para pedir ajuda em uma luta contra seu pai, um poderoso feiticeiro. Aqui, mais que os conflitos que a premissa indica, o filme dedica tempo aos personagens, focando nas premonições e acontecimentos fantásticos. Já A Hora e Vez de Augusto Matraga, adaptação do conto de Guimarães Rosa, narra a jornada de ódio e penitência de um violento fazendeiro, destacando a relação do protagonista com a natureza e a religião - pilares do universo roseano. Partindo da especificidade cultural, esses filmes encontram seus trunfos na capacidade de aglutinar e traduzir visões de mundo por vezes tão contraditórias entre si.

Há ainda filmes que expandem essa grandiosidade abraçando diferentes gêneros e formas cinematográficas. É o caso de Mulan, que mistura animação e musical para contar a história de uma jovem chinesa que decide se disfarçar de homem para lutar no lugar de seu pai doente numa guerra que se aproxima. Da mesma forma, é possível observar a mistura de gêneros no épico de ação anticolonial RRR, em que dois homens de diferentes posições sociais devem se unir para enfrentar o poderio britânico na Índia do começo do século XX. Ambos colocam todos seus recursos ao dispor do espetáculo, contando não somente com sequências de ação impressionantes, como também números musicais e dramas espetaculares para recontar a jornada dessas figuras importantes da cultura chinesa e indiana.

Indo numa direção contrária, está Aguirre, A Cólera dos Deuses, que ao invés de heroicizar seu personagem colonizador espanhol, opta por demonstrar a sua decadência e crueldade, numa jornada de degradação moral e física em busca do mítico El Dorado. O filme de Werner Herzog destaca-se pela sua crueza, acompanhando as personagens através de uma tortuosa jornada em meio à floresta amazônica, com uma câmera muitas vezes na mão, trazendo à tona a visceralidade de todos desafios enfrentados por eles (e pela equipe do filme).

Não se deve esquecer do cinema de fantasia épico. A essa faceta mágica do cinema épico, dedicamos o Noitão Senhor dos Anéis, exibindo em 4K a trilogia completa durante uma noite inteira de aventura. Adaptando os livros de J. R. R. Tolkien, tidos como intraduzíveis para o cinema, o diretor neozelandês Peter Jackson vale-se de efeitos especiais clássicos e inovadores, utilizando desde truques de perspectiva a seres feitos inteiramente no computador para criar imagens e sequências espetaculares.

No noitão nos rendemos ao épico no cerne da palavra: batalhas enormes, heróis de capa, espada e jornadas imensas, mas dedicamos uma mostra completa à diversidade de caminhos que o cinema épico oferece, em busca de finalmente agradar a gregos e troianos.

Boas sessões!