UMA PEDRA NO CAMINHO


Um close-up de um rosto em lágrimas. Um bandido invadindo a casa de uma mocinha indefesa, entrecortado com o correr da carruagem da polícia. Alguns poderiam defender que a emoção humana e o dinamismo do movimento fazem parte da essência do cinema. Como entraria nos filmes, então, aquilo que parece inerte e irresponsivo? Que interesse teria a câmera nas rochas imóveis que habitam o planeta muito antes do primeiro abrir de olhos, e que relações elas podem ter com os sentimentos e ações da vida? Entre os dias 19 de fevereiro e 3 de março, o CINUSP apresenta a mostra Uma Pedra no Caminho. Pedregulhos, cristais, cavernas, vulcões e montanhas serão os caminhos de pedra - e as pedras no meio do caminho - dos 20 filmes, longas e curtas, selecionados. Neles, as subjetividades se modificam pelo contato com o que há de mais bruto e pré-histórico na natureza. Para aprofundar as discussões que envolvem essa inter-relação entre a História humana e as pedras, a mostra também terá um debate no dia 28/02 com a professora Eliane Del Lama, especialista em preservação da herança cultural, mineralogia e petrografia. O tema abordado será a relação entre rocha, memória e cultura.

Começamos encarando o imóvel, uma ânsia de chegar cada vez mais perto e descobrir algo nos detalhes da superfície sólida. Para além do que o olhar humano é capaz, o microscópio em Cristais Líquidos enxerga a beleza escondida dos padrões complexos e coloridos do processo de polarização de cristais. Já em O Buraco, mergulhamos nas profundezas intocadas da terra para que a luz das lanternas de um grupo de cientistas dê forma às cavernas do sul da Itália, como que penetrando num proibido organismo vivo. Para explicar mais sobre a espeleologia - o estudo de cavernas - a sessão do filme no dia 01/03 será acompanhada de debate com o professor e espeleólogo Francisco William da Cruz Júnior. Enquanto nas cavernas a beleza está escondida, essas riquezas da terra são trazidas à luz da indústria mineradora pelo barulho das máquinas de Wolfram, em que os detalhes minuciosos da extração e refino dos minerais é tornado em uma sinfonia cinematográfica. Já na superfície, a paisagem dos Andes se delineia enigmática, e as sobreposições e colagem de seus relevos no curta Altiplano fazem vibrar e tensionam as vistas a princípio calmas. Essa ideia atinge dimensões radicais nos registros de um casal de vulcanistas, montados no documentário-homenagem O Fogo Interior de Werner Herzog. Aqui, se vai até o limite da vida para encontrar imagens descomunais nunca antes vistas: as explosões sublimes da matéria que colapsa nos vulcões em erupção.

Depois do olhar, as mãos e a imaginação arriscam o toque. Os pedreiros em Canção de Pedra estabelecem uma relação espiritual com o granito das montanhas, desenvolvendo práticas ritualísticas que antropomorfizam o minério por meio do trabalho. Esse caráter religioso remonta aos ancestrais círculos de pedra britânicos, como o Stonehenge. No entanto, é abolindo a devoção que Barbara Hammer filma esses templos em Círculos de Pedra, fabulando com a câmera sobre a relação entre corpo, pedra e paisagem. Enquanto a cineasta americana utiliza os movimentos de câmera para brincar com as pedras, Švankmajer em Um Jogo com Pedras usa da animação stop-motion para fazer seixos de vários tamanhos pularem uma ciranda lúdica, criando com eles ora desenhos abstratos, ora esculturas de figuras. Em Cais Espiral, entretanto, o princípio construtivo da escultura de Robert Smithson é outro. No curta, o artista deixa indefinida a linha entre interferência humana e a natureza, criando com toneladas de terra uma escultura geológica espiral em um lago de sal, que parece um misto de rito ancestral, formação continental e organismo vivo.

Despido da fantasia, no entanto, a manipulação dos minérios se torna utilitarista: o uso do dos combustíveis e metais para a reprodução material da vida humana. Entre a inventividade dos filmes anteriores e a análise socioeconômica, a animação Mina retrata as relações de classe opressivas entre os trabalhadores negros e os patrões brancos em minas da África do Sul. Para criar imagens explosivas que se mesclam umas às outras, ele desenha com a própria matéria extraída das minas, o carvão.  Mais próximo de um realismo poético, Vittorio De Seta adentra com a câmera junto dos mineradores de enxofre do sul da Itália em Surfarara, acompanhando de perto seu trabalho pesado escondido nas sombras da terra e expondo a insalubridade de suas rotinas. Os efeitos sociais tomam outra perspectiva no curta de Leon Hirszman Pedreira de São Diogo, em que funcionários se reúnem para impedir uma detonação que pode destruir os barracos de uma favela próxima. Também retratando as consequências da mineração para moradores da região, o documentário brasileiro Rejeito traz à tona os desastres recentes de rompimento de barragens no país, mostrando a resistência da população de áreas de risco ao abuso das mineradoras e a luta pela regulação de suas atividades.

Nessa passagem do olhar, que começa no mineral e alcança o humano, encontramos a pedra como uma influência no desenvolvimento de narrativas. John Ford coloca o carvão como o centro dramático de Como Era Verde Meu Vale. Nessa trágica história de separação familiar, todas as personagens são afetadas pela exploração na mina de alguma maneira, cuja presença parece corromper suas relações. Partindo para uma manifestação física da pedra no filme, os irmãos Safdie utilizam a aquisição de uma opala negra como o incidente incitante de Jóias Brutas, desencadeando uma trama dominada pela ansiedade e ganância de suas personagens. Passada pelo processo de refinamento, a pedra preciosa se torna um objeto de luxo e opulência. Em Desejos Proibidos, um par de brincos se torna a origem do melodrama entre um general rico e sua esposa, que vende os pingentes para pagar suas dívidas em segredo. Através de uma série de mal-entendidos, a narrativa infere às joias um peso que ultrapassa seu valor material, adquirindo um caráter simbólico para as relações entre todos os envolvidos. No seu curta documental As Jóias da Coroa do Irã, o cineasta Ebrahim Golestan também dá destaque para as pedras preciosas e os tesouros de seu país. Com uma abordagem crítica e poética ele pondera a relação entre a opulência da realeza e a dura realidade da população. 

Passando do primeiro plano para o fundo, outras histórias incorporam o reino mineral como paisagem dos seus conflitos, contextualizando-os e os imbuindo da energia de sua presença. Assim faz Rossellini em Stromboli, onde o cenário pedregoso e eruptivo de uma ilha vulcânica reforça a sensação de aprisionamento e reclusão de uma refugiada lituana dentro da comunidade conservadora italiana. O despertencimento elevado pela paisagem geológica se dá em outra nota em Eternidade. Seus planos fixos justapõem os esforços de subsistência de um casal de anciãos com o cenário colossal do topo dos Andes. Após seu filho partir para a cidade, eles lutam contra a idade para sobreviverem sozinhos, quando parece que até a natureza também os abandonou. Essa solidão e abandono, em que resta apenas o tempo para observar as ruínas do que um dia existiu, é o tema de Bassae. Do filme fica uma pergunta inquietante: o que restará dos caminhos da humanidade quando a vida acabar, além da poeira das ruínas de pedra sem identidade?Ao fim desse percurso entre humano e inumano, o que se ressalta é a aptidão do cinema de criar um olhar único sobre a matéria. Diante da sua impassividade, a arte é capaz de rearranjar as rochas inertes no meio do caminho e conduzi-las através do tempo. Assim, o CINUSP convida seu público a olhar para as pedras, menos como um obstáculo inerte e indiferente, mas como um objeto multifacetado que rege, em muitos sentidos, a nossa relação com o espaço.

Boas sessões!