RASTROS DE MISTÉRIO
É chegada a hora da verdade, os suspeitos estão todos enfileirados num cômodo. O detetive suspira e diz: “Eu acho que foi o projecionista, com 17 longas e um noitão, nas salas do CINUSP!”. Sim, dos dias 1 a 28 de abril, seremos os culpados pela mostra Rastros de Mistério, uma seleção de icônicos e imprevisíveis filmes de investigação. Para tal, contamos com um seleto time de detetives, particulares ou não, profissionais ou apenas entusiastas da arte da dedução, para nos guiar por esses mistérios.
Histórias de investigação não são novidade para ninguém. Muito antes do cinema, o mistério já era um dos mais populares gêneros literários. São diversos os escritores que fizeram carreiras inteiras explorando o universo dos crimes enigmáticos. Existe um desafio em transpor uma atividade que na literatura é extremamente verborrágica e mental para o cinema, um meio, não raro, ligado à ação e ao gesto.
Assim, principalmente na Hollywood clássica, as eloquentes deduções dos detetives dos livros deram espaço para tramas recheadas de embates físicos e romances impossíveis. O cinema noir consagrou a figura do detetive no cinema enquanto uma figura misteriosa, de chapéu e sobretudo, frequentemente acompanhado de um cigarro e uma femme fatale, a linda mulher que será o seu fim. Esse é o caso de Fuga do Passado, um filme de Jacques Tourneau, um diretor consagrado do gênero. As sombras características do noir volta e meia eram utilizadas não apenas para criar uma atmosfera soturna, mas também para encobrir a precariedade dos cenários. O escasso, porém, virou linguagem, e os planos escuros que barateavam a produção também se tornaram uma das principais marcas do gênero. No longa Laura, mais uma vez um detetive fumante e encapado cai nas teias de mentira de uma mulher fatal. Nesses dois exemplos, ressalta-se outra característica da transposição das histórias de detetive para o cinema: as histórias antes adultas, explicitamente violentas e sensuais, ganham uma abordagem muito mais branda frente ao Código Hays, conjunto de normas morais imposto aos filmes norte-americanos produzidos entre as décadas de 1930 e 1960. Aqui, apesar da latente volúpia das mulheres em tela e da inevitável tensão sexual, nenhum ato é consumado, mas sim cifrado em gestos, assim como os mistérios que os detetives tentam decifrar.
O noir, apesar de mais associado às décadas de 1940 a 1960, repercute até hoje. Chinatown é um dos longas que utiliza-se desse imaginário. Num gesto referencial, todas as características desses filmes são exacerbadas, beirando a caricatura. Se os detetives noir são doces, apesar de brutos, Jack Nicholson - num dos papéis que o consagrou como um dos grandes nomes de sua geração - será muito bruto e muito doce. Também utilizando-se da iconografia de um ator símbolo da sua geração, em Detetive, Godard e Jean Pierre Léaud transformam o detetive em um espectador. Aqui, o investigador é um agente capaz de, através da observação, atribuir significados a imagens enigmáticas. Não apenas o cinema é referenciado, como também a própria audiência. Ao assistir filmes de detetive, o público invariavelmente mimetiza o gesto essencial do protagonista: o olhar.
Nesse sentido, a natureza voyeurista e investigativa do cinema, seja de mistério ou não, também está presente no clássico de Antonioni Blow Up. No filme, a câmera do protagonista flagra um possível crime, assim como as câmeras que registraram os demais crimes presentes na mostra. Na literatura de investigação, o crime não é exposto, mas sim explicado, deduzido. É essa natureza visual do cinema que o longa problematiza. Nem tudo o que é visível é o que realmente ocorreu, nem tudo o que ocorreu é visível. Thomas, o fotógrafo de Antonioni, torna-se obcecado pelo crime, assim como tantos detetives antes dele. Em Parceiros da Noite, o personagem de Al Pacino também é sugado pela investigação que está envolvido. Ao final do filme, fica claro que encontrar um culpado não era a solução para os crimes, mas que há um contexto social muito maior que circunda a onda de assassinatos de homens gays que assolou Nova Iorque.
De maneira similar, A Cura de Kiyoshi Kurosawa trabalha com um assassino em série que não cabe ser visto como um caso isolado, mas sim como sintoma de um problema maior. No filme, em última instância, as mortes estão mais ligadas a um vazio existencial profundo que ronda e atormenta um inconsciente coletivo do que a um único indivíduo propriamente. A lógica punitivista que é intrínseca aos romances policiais e aos filmes de detetive, é, não raro, colocada em cheque pelos próprios. Em Memórias de Um Assassino, a brutalidade do crime mistura-se com os próprios métodos de investigação. Sob a presença iminente da ditadura militar coreana, a busca por um único culpado torna-se quase frívola numa sociedade tomada pela violência. O mesmo ocorre em A Próxima Vítima, o representante brasileiro da mostra. No olho do furacão da redemocratização, uma onda de assassinatos aterroriza o bairro do Brás. A imprensa, ainda aprendendo a lidar com a liberdade vigiada, faz a cobertura dos crimes e um repórter acaba se envolvendo, até demais, com a investigação. A televisão é colocada, assim como a fotografia em Blow Out, como testemunha da brutalidade. A violência atrai as câmeras ou as câmeras atraem a violência? Apesar de ancorado na década de 1980, o questionamento colocado pelo filme não poderia ser mais atual à televisão brasileira.
Em uma abordagem completamente diferente, Clue explora e zomba da banalização da violência, seja no audiovisual, seja nos jogos de tabuleiro. Recheado de mortes e cadáveres, a resolução do crime é um mero detalhe. Assim como no jogo, é possível ter culpados diferentes e intercambiáveis. O filme e o jogo são um exemplo clássico de whodunnit - em tradução livre, “quem matou” -, um sub-gênero dos romances de detetive. Para entendê-lo, basta relembrar o seu mais célebre exemplar, Assassinato no Expresso Oriente. O clássico de Agatha Christie, adaptado por Sidney Lumet, parte de uma premissa simples: o detetive Poirot está a bordo do Expresso Oriente quando uma pessoa é brutalmente assassinada. Agora, cabe a ele encontrar o assassino, tarefa nada fácil devido à personalidade enigmática dos passageiros. A adaptação de 1974 destaca-se por transpor a finesse do romance de Christie para a telona. O elenco estelar do filme harmoniza com uma direção de arte requintada, materializando as imagens que o livro evoca.
Ainda na esfera das referências literárias, O Pássaro das Plumas de Cristal é um clássico, dirigido por um dos seus maiores expoentes do terror italiano, Dario Argento. O giallo - em português, amarelo - referência a cor das capas das revistas pulp de histórias policiais, cujas tramas, repletas de crime, sangue e, é claro, detetives, foram também transpostas para o cinema. Não apenas respaldado num imaginário literário, o filme conta com um escritor como protagonista. Ele, assim como o repórter e o fotógrafo em outros filmes, banca o detetive e transforma sua profissão num pretexto para conduzir sua própria investigação sobre um assassino. Em O Segredo dos Seus Olhos, a escrita de um livro é um pretexto para o personagem de Ricardo Darín, um oficial da justiça, retornar a um caso sem solução. O ímpeto de descobrir a verdade e contar essa história, porém, choca-se com uma burocracia travada e a resistência de um judiciário corrupto.
As investigações, porém, não partem apenas de assassinatos. O mais simples dos sumiços é o suficiente para atiçar uma busca que, se malsucedida, invariavelmente, provoca uma investigação. O Silêncio do Lago trata do desaparecimento de Saskia e a busca implacável que Rex, seu namorado, faz por ela. O filme é, porém, sádico ao colocar o espectador um passo à frente do protagonista, expondo coisas ainda incógnitas para o investigador. Em Os Suspeitos, o desaparecimento repete-se mas a estrutura é outra. Tateando um mundo gelado, duas investigações correm em paralelo: a do detetive e a do pai das vítimas. A busca pela verdade, porém, vem com o seu preço e, quando se deseja vingança e não justiça, as consequências podem ser catastróficas.
Ainda, contaremos com duas sessões especiais. Blow Out será exibido após a sessão de Blow Up, no dia 11/04 às 21hrs. Como não poderia faltar, a Máquina do Mistério chega ao CINUSP dia 04/04, também às 21hrs, com a exibição do live-action de Scooby-Doo. Por último, o Noitão Fincher ocorre dia 19/04, às 21 horas, trazendo três títulos de um dos diretores que mais se debruçou sobre o universo investigativo nas últimas décadas.
Siga as pistas e venha ao CINUSP conhecer e investigar as histórias dos detetives, inspetores, repórteres, fotógrafos, escritores e tantos outros que debruçaram-se sobre um mistério buscando saber a verdade.
Boas sessões!