EM CARTAZ

VIM E IREI COMO UMA PROFECIA


 O fascínio despertado pela última obra de um artista, aquela que antecede sua morte, é de difícil apreensão. Se a morte, por um lado, é a única certeza que temos em vida, por outro, ela nos abre para a dimensão do desconhecido.

 Talvez por isso as histórias sobre as origens (de um herói, de um artista, de um mito), bem como os romances de formação, sejam mais populares do que as narrativas de despedida. As primeiras tratam de processos com que a maioria consegue se identificar positivamente (de onde viemos e como nos formamos enquanto sujeitos-no-mundo), ao passo que as últimas nos confrontam com o inevitável fim, para o qual não há resposta fácil.

Entre os dias 06 de maio e 2 de junho, a mostra do CINUSP Vim e irei como uma profecia irá se dedicar a esse momento singular: a obra final, o último filme realizado por grandes cineastas de diferentes gerações e nacionalidades.

Alguns tiveram vidas longevas e filmaram praticamente sem parar (Akira Kurosawa, Humberto Mauro, Danièle Huillet, Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Ousmane Sembène, John Huston, Jean-Luc Godard). Outros se despediram precocemente (Glauber Rocha, Rainer Werner Fassbinder, John Cassavetes, Satoshi Kon), ou viveram e filmaram bastante, mas nos deixaram com a sensação de que poderiam ter vivido e filmado ainda mais (Chantal Akerman, Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla, Carl Theodor Dreyer).

As obras que exibiremos se dividem em dois eixos. De um lado, há o que podemos chamar de “filme testamento”: o filme que trabalha com a dimensão do passado, da memória, da compreensão dos ciclos da vida, ou que afronta diretamente o pensamento da morte, assumindo a proximidade do fim.

Com frequência, a noção de “filme testamento” se associa a obras de maturidade e serenidade, que coroam o fim de uma longa caminhada artística na chave da harmonia e da reconciliação com o mundo, como em A rotina tem seu encanto de Yasujiro Ozu, Madadayo de Akira Kurosawa e O olhar de Michelangelo de Michelangelo Antonioni. Mas nem sempre é assim: no filme de John Cassavetes Amantes, por exemplo, a vida é definida pelo próprio diretor/ator como “uma série de suicídios, divórcios, promessas não cumpridas, infâncias destruídas” – em outras palavras, viemos do caos e para lá retornaremos.

Já em Os vivos e os mortos, de John Huston, as coisas se confundem: os fantasmas do passado retornam ao som de uma doce canção, trazendo com eles a beleza e a intensidade da juventude, da paixão, da partilha de momentos tão alegres quanto fugazes, mas também a tristeza, o remorso, o ressentimento. De forma semelhante, o curta de Humberto Mauro, Carro de Bois, rememora, motivado pelo canto melancólico do carro de bois, antigas tradições rurais, lamentando seu desaparecimento.

Em outros casos, o caráter testamentário está menos numa mensagem de despedida do que no fechamento coerente de uma trajetória: o cineasta se mantém fiel a seus princípios e entrega uma obra que parece iluminar, em retrospecto, tudo o que constituiu a essência de seu estilo e de seu universo temático, como em Esse obscuro objeto do desejo de Luis Buñuel, Moolaadé de Ousmane Sembene, Aqueles encontros com eles de Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub, Falsa loura de Carlos Reichenbach, e Encarnação do demônio de José Mojica Marins.

Para discutir a interconexão destes filmes com a obra dos cineastas, a mostra contará com um debate com o crítico de cinema Felipe Furtado, no dia 15/05, sobre o filme de Reichenbach, e com a professora Dalila Camargo Martins, especialista na obra de Straub e Huillet, no dia 28/05.

Do outro lado, diferindo do tom de “testamento”, há os filmes que se encaixam na categoria de “estilo tardio”, que já não diz respeito a obras finais feitas de resolução e síntese, mas marcadas por intransigência, fragmentariedade, excentricidade, anacronismo voluntário, contradição em aberto.

“Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes”, afirmou Adorno num ensaio sobre o estilo tardio em Beethoven. Na esteira de Adorno, Edward W. Said assinalou que o estilo tardio “tem a ver com uma tensão despida de harmonia ou serenidade, com uma produtividade conscientemente improdutiva, do contra”. É o “anti-filme” de Sganzerla, O signo do caos, bem como Não é um filme caseiro, de Akerman.

O estilo tardio é o reduto dos não reconciliados, daqueles que, mesmo quando almejam a totalização, a inclusão simultânea de tudo, como em We can’t go home again de Nicholas Ray, A idade da terra de Glauber Rocha e Imagem e palavra de Jean-Luc Godard, deparam-se com a fragmentação, com a implosão da unidade orgânica da obra, que se despedaça em imagens e sons carentes de sentidos óbvios, ao mesmo tempo que plenos da radiância de uma energia vanguardista que o passar dos anos, em vez de enfraquecer, somente tornou mais forte.

O estilo tardio pode também ser a ocasião da descoberta in extremis de uma nova linguagem, de um novo terreno técnico e estilístico de cujo desenvolvimento futuro a morte do cineasta nos privou. São os casos de Ivan, o terrível de Sergei Eisenstein, Querelle de Rainer Werner Fassbinder e Evidentiary Bodies de Barbara Hammer. Ou mesmo uma reaparição renovada de traços já conhecidos das obras dos cineastas, mas que ganham um aspecto novo ao surgirem de uma forma deslocada. Se no primeiro momento esses elementos parecem anacrônicos, desdobram-se de forma a apontarem para o futuro do cinema. Por exemplo, o uso vertiginoso dos travellings com zoom na filmagem de um museu contemporâneo em Beaubourg, de Roberto Rossellini, ou a encenação rigorosa e anti-naturalista que Dreyer emprega em Gertrud. A complexa discussão que Rossellini levanta sobre a natureza dos museus será debatida pelo professor Ricardo Fabbrini, no dia 27/05, numa sessão conjunta com o curta de Antonioni.

Tanto no filme testamento quanto no estilo tardio, a obra derradeira é, a um só tempo, ponto final e reticências: impele-nos a olhar para o conjunto da produção de um cineasta à procura de um sentido fechado (do mesmo modo que o ponto final é o que autoriza a coerência de uma frase), mas deixa uma série de questões em aberto, prolongando ad infinitum a potência e o significado da trajetória aí encerrada. Toda essa problemática levantada pela mostra será debatida pelo crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. no dia 21/05, após a sessão de O Signo do Caos.

Comprovaremos, ao longo da mostra, que as grandes obras sobrevivem aos seus criadores.

Boas sessões!

Por Luiz Carlos de Oliveira Júnior