AMOR BANDIDO


Reza a lenda que o amor nos deixa loucos. Nos casos mais arrebatadores, a imprudência que dele nasce permite que inúmeros amantes encontrem seu lugar no universo da rebeldia e da violência. Sob esse prenúncio, do dia 17 de junho a 14 de julho, o CINUSP planeja roubar corações com a mostra Amor Bandido, uma seleção de filmes cativantes sobre paixões que flertam com o mundo do crime.

A união nem sempre estável entre romance e delinquência já ditou e ainda dita muitas narrativas das diferentes gerações do cinema. Nas 19 obras escolhidas, mesmo os amores mais ardentes precisam coexistir com e, muitas vezes, sobreviver à sua ilegalidade ou à de suas partes.

Quando se pensa em casais delinquentes, se pensa em Bonnie e Clyde. No clássico de 1967, que define a geração da Nova Hollywood, a rebeldia de duas personagens famosas do cinema e da vida real é glorificada sob a chave de um romance inevitavelmente trágico. Antes de cair nas mãos de Arthur Penn, a direção desta história quase foi de Jean-Luc Godard, que sete anos antes fez sua marca na nouvelle vague com Acossado. Nesta obra francesa sobre um casal em fuga, o trabalho de câmera desprendido e jump cuts que fazem pouco caso da continuidade de cena tornaram-se referência absoluta para o cinema moderno –  e estão acenados na recontagem da vida de Bonnie e Clyde por Penn. Ainda, Acossado encontra-se às voltas de influências americanas, e remonta a Mortalmente Perigosa, de 1950. De uma tradição de filmes B que inspiraram Godard e com uma direção dinâmica a serviço da história a ser contada, o longa segue dois amantes apaixonados por armas de fogo e fecha (ou melhor, inaugura) anos desta conversa intertextual extremamente importante. 

Casais fora-da-lei são historicamente reprisados pelos estúdios hollywoodianos, como resgata-se ainda em 1932 com Ladrões de Alcova, de Ernst Lubitsch. Na história de dois parceiros no crime e no amor que decidem roubar sua empregadora, são um triângulo amoroso, um humor desinibido e os tons sensuais que ditam essa comédia pré-Código Hays que revelou o charme de Miriam Hopkins.

Isso não exclui, claro, outros países da bandidagem. Com atores não profissionais, Depressa, Depressa faz um comentário quase documental sobre a melancólica e insubmissa juventude espanhola pós-franquista através das figuras de uma garçonete e um ladrão de carros. Ainda na chave política, Amor e Anarquia, de Lina Wertmüller, segue os passos de um anarquista que, enquanto planeja assassinar Mussolini, desenvolve uma paixão inesperada por uma prostituta. Com uma direção de arte refinada, o dilema entre os riscos de fazer justiça e o amparo do amor divide o rapaz afetado pelos horrores da Itália fascista.

Muitos amores proibidos, como no caso de Questão de Honra, de Idrissa Ouedraogo, não necessariamente vivem da violência, mas são igualmente recriminados por romperem com as normas sociais. No filme, um rapaz retorna à sua aldeia no Sahel burquinês e vê-se envolvido num trágico romance com a mulher antes prometida a ele, agora casada com seu pai. Num universo próximo, está Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, cujo protagonista, interpretado pelo próprio diretor, zarpa com a sobrinha de sua empregadora, já noiva de outro homem. Com elementos dos westerns transferidos para o sertão nordestino, os dois são perseguidos em uma jornada violenta pelo direito de viverem juntos. A eles se une, ainda, Os Amantes Crucificados, encarnados na figura de uma mulher casada e do funcionário de seu marido, que são falsamente acusados de adultério. Sujeitos à pena de crucificação, a fuga dos dois nutre um espírito escapista às margens da sociedade e abre um mundo paralelo de possibilidades.

O crime e a insurreição também manifestam-se na auto afirmação de identidades que tentam se libertar de uma marginalidade já imposta à sua existência. Na comunidade queer, o mantra “be gay, do crime” é ressoante – e resume bem a orientação temática de muitas obras. The Living End, de Gregg Araki, resgata a imagem do casal de criminosos e a transpõe para a experiência gay durante a crise da AIDS nos anos 1990, num movimento característico do New Queer Cinema de negação a um estilo de vida excluso e regrado. Na mesma década, as irmãs Lana e Lilly Wachowski adicionam Ligadas pelo Desejo à coleção de casais trambiqueiros. Nesse estiloso longa de estreia, uma ex-presidiária é seduzida pela namorada de um gângster, e ambas armam um plano para fugirem juntas – não sem antes roubar o dinheiro sujo da máfia.

Em Swoon - Colapso do Desejo, a transgressão também está em maneiras de repensar narrativas antes reprimidas. O caso real de dois rapazes que juntos assassinaram um garoto de 13 anos, que já havia inspirado o Festim Diabólico de Hitchcock, aqui é recriado com ênfase na relação afetiva dos jovens, tocando no que foi um dilema para a mídia e a justiça americanas: atribuir o delito à sensação de impunidade proveniente do privilégio com que foram criados; ou à sua orientação sexual? Em uma sessão dupla, o filme acompanha o curta Canções de Amor de Jean Genet, que, em tempos de criminalização da homossexualidade na França, transforma o anseio pelo objeto de desejo impossível, traduzido em dois presidiários que buscam contato humano, em mais que simbólico.

Essa franqueza também é fundamental no longa Bye, Bye Love, de 1974, primeiro e único filme de Isao Fujisawa e que foi considerado perdido até 2018. Neste road-movie sobre um casal em fuga, a relação emocional dos dois protagonistas – que não se conformam às normas de conduta nem às de gênero – pertence a um recorte sem precedentes da subcultura queer no Japão.

Ao atravessar as primeiras décadas do século XXI, Amor Até as Cinzas encena, na trágica figura de uma mulher absorvida pelo crime por amar um mafioso, a luta pela manutenção de valores e de uma paixão que ameaçam desmanchar-se sob as frenéticas renovações culturais e tecnológicas da China contemporânea. Cem anos antes, Victor Sjöström dispôs de consciência parecida em O Fora-da-lei e Sua Mulher, de 1918. Quando uma rica viúva descobre ter se apaixonado por um ladrão foragido, ela escolhe deixar tudo para trás e viver com ele nas montanhas. Com uma fotografia que enobrece as paisagens islandesas, este filme mudo posa a clandestinidade e o contato com a natureza enquanto alternativas a uma comunidade socialmente desigual e limitante.

As imagens potentes de Sangue Ruim também ilustram engenhosamente a saga de um jovem rapaz que se apaixona por Juliette Binoche no papel da parceira de seu contratante – e que, por mais que tente, se torna mais uma adição à galeria de amores inalcançáveis. Essa impossibilidade transborda, de modo paralelo, na obra digital Miami Vice, de Michael Mann. Nela, uma dupla de detetives estrelada por Jamie Foxx e Colin Farrell se infiltra numa quadrilha de traficantes e um deles se apaixona pela esposa do chefe da gangue, imerso numa narrativa que equilibra a ação febril da história com a concretude lacunar dessa paixão.

Por fim, em Um Momento de Romance, um membro do crime organizado chinês escapa de um roubo ao fazer de refém uma rica jovem, e ambos veem-se no centro de um amor improvável. Contra todo o resto do mundo, esse romance regado de violência explosiva e dramaticamente musicado tenta sobreviver sob a crença de que um instante juntos, breve que seja, é o suficiente.

Em suas diferentes manifestações, o amor romântico pode estabelecer uma conversa intimamente explosiva com o crime, a violência e, mais que isso, com a quebra da normalidade. Sob a adrenalina da bandidagem, o CINUSP convida o espectador a se permitir morrer e matar de amor, mesmo que por algumas horas, na sala de cinema.

Boas sessões!