MUNDO DAS CRIANÇAS
Enquanto os adultos passam seus dias preocupados com dinheiro, horários, saúde e trabalho, as crianças guardam suas energias para outras questões. Quem será o dono da rua? Como se tornar um jogador de futebol? Como lidar com um primeiro amor? Como evitar que um irmão mais novo tire seu status de queridinho da mamãe? Não é fácil ser criança e por isso, entre os dias 15 de julho e 04 de agosto, o CINUSP apresenta a mostra Mundo das Crianças, que traz uma seleção de filmes preocupados com as preocupações dos pequenos.
O escritor britânico J.M. Barrie termina o clássico da literatura infanto-juvenil Peter Pan com a frase: “E assim continuará, enquanto existirem crianças alegres, inocentes e desalmadas”. A alegria e a inocência são qualidades comumente atribuídas aos pequenos, e chamar crianças de “desalmadas” é, porém, surpreendente e gera até desconforto. Todavia, ao assistir Le Pupille, da diretora Alice Rohrwacher, é fácil entender de onde vem tal julgamento. Ambientado nos anos 1940, o filme conta a história de um grupo de órfãs italianas que são diariamente importunadas pelas freiras que administram o internato em que vivem. A rabugice das freiras, porém, é apenas combustível para a graça e a malícia das meninas, que revidam em toda a sua infantilidade. O média será programado junto ao clássico especial O Natal do Charlie Brown, que, assim como Le Pupille, se passa durante as festividades de fim de ano. Nessa aventura, Charlie Brown, frustrado com o materialismo à sua volta, decide dirigir a apresentação de natal da sua escola. Uma das marcas mais célebres da série de animações é a maneira como ela retrata os adultos, que aparecem sempre da cintura para baixo, falando coisas ininteligíveis.
A desimportância dos adultos para o universo de Charlie Brown é também vista em Os Meninos da Rua Paulo. Baseado no romance de Ferenc Molnár, o filme traz a história da batalha pelo Grund, um terreno baldio em Budapeste muito propenso para brincadeiras e cuja ocupação é disputada por dois grupos de garotos. A magnitude da batalha, assim como a importância do Grund, passam despercebidas pelos adultos, assim como as crianças permanecem sempre alheias às questões dos mais velhos.
Mas não são todos os filmes que são regidos por grandes batalhas ou têm vilões impiedosos: alguns títulos da mostra são marcados por problemas que só são grandes ao olhar dos pequenos. Em O Pequeno Nicolau, o garoto que nomeia o filme acha ter ouvido seus pais conversando sobre sua mãe estar grávida e se desespera com a possibilidade de não ser mais filho único e, por consequência, o centro das atenções. Baseado na série de livros francesa, o filme traduz para a tela grande toda a candura do seu material original. Outra adaptação de livro queridinho da criançada que será exibida é Menino Maluquinho, de Helvécio Ratton. Aqui, assim como seu colega francês, o protagonista tem que conciliar suas brincadeiras com mudanças na sua família: os seus pais irão se divorciar. O filme de 1995 não só emociona ao dar vida aos personagens de Ziraldo, mas também é uma celebração do ato de brincar e de todo o universo infantil brasileiro. As brincadeiras retratadas no filme - rouba-bandeira, carrinho de rolimã, bente-altas - são marca de uma época em que não havia celulares e o tempo de tela das crianças não era nem de perto uma preocupação.
A chegada da televisão, assim como os celulares na contemporaneidade, estremeceu as relações de pais e filhos. Em Bom Dia, o diretor Yasujiro Ozu narra a revolta dos irmãos Hayashi, que fazem greve de silêncio até que a mãe compre uma televisão para eles assistirem as lutas de sumô. O filme destaca-se na carreira do diretor por ser uma comédia em meio a vários dramas. Aqui, ele traz inusitadas piadas com flatulências e esbanja um humor simples e cáustico, compatível com a sofisticação dos seus filmes mais dramáticos. No silêncio e nos puns, as crianças protagonistas ainda se comunicam melhor que os adultos à sua volta.
A incomunicabilidade do mundo adulto, a ligação infantil com os esportes e com a televisão não são exclusivos do Japão. Do outro lado do mundo, num filme situado na década de 1970, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias tem como protagonista Mauro, um garoto apaixonado por futebol. Ele acompanha a copa de 70 pela tevê enquanto espera seus pais, membros da resistência contra a ditadura militar brasileira, voltarem de “férias”. A cruel realidade se contrapõe ao olhar infantil, que absorve a violência do momento e a abstrai, não raro, em termos futebolísticos. Mauro, porém, não é a única criança da mostra mobilizada pelo seu amor ao futebol. A Bola de Ouro, uma produção guineense, conta a história de Bandian, um garoto determinado a ser o melhor jogador de futebol do continente africano. O filme é um retrato dessa paixão, assim como da cultura local. Para alcançar seu objetivo, Bandian visita um feiticeiro, que realiza um ritual para fazer com que suas pernas sejam rápidas e marquem muitos gols. Os treinos do menino, também, contam com percussionistas e danças típicas.
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, diz um célebre provérbio africano. Na Idade da Inocência, obra menos conhecida de François Truffaut sobre a infância, é uma poderosa constatação dessa mentalidade. Sem um protagonista definido, o filme se constrói a partir da vida de um grupo de crianças de uma pequena cidade francesa. Lá, vizinhos cuidam dos filhos dos outros e dividem atenção e carinho com todos os pequenos do local, que não são vistos como filhos de apenas uma família, mas sim daquela comunidade. O mesmo ocorre em Crooklyn: Uma Família de Pernas pro Ar, um filme semi-biográfico de Spike Lee, que vale-se das suas memórias - e das dos seus irmãos que co-roterizaram o filme com ele - para formar a trama. O longa é um retrato, de uma perspectiva infantil, da vida social e familiar do Brooklyn na década de 1970. Ainda em Nova Iorque, mas aqui uma década antes, em Esconde-Esconde, Su Friedrich intercala a história fictícia de Lou - inspirada na infância da própria diretora -, com entrevistas reais de suas amigas, já adultas, relatando como foi o processo de se entenderem como lésbicas.
Os primeiros amores da infância, o desafio do dever de casa e a descoberta do seu lugar no mundo são também retratados na animação japonesa Sussurros do Coração. O filme é a primeira e única direção assinada por Yoshifumi Kondo, que teria se tornado um dos principais nomes do Estúdio Ghibli se não fosse por sua morte precoce. A protagonista é uma jovem que aspira a ser escritora. Um dia, ela descobre que todos os livros que aluga na biblioteca foram alugados também por uma mesma pessoa. Curiosa, ela vai atrás de saber quem é sua alma gêmea literária. Outra animação que trata dos desafios da infância, mas, aqui, a partir do mundo interior das crianças é Divertida Mente. Você já olhou para alguém e se perguntou: o que passa na cabeça dela? Divertida Mente tenta responder essa e outras perguntas. Para onde vão os amigos imaginários depois que crescemos? O que faz de nós únicos? A partir da história da Riley, uma garota que acabou de mudar de cidade, o filme propõe uma visão única e criativa sobre a psique humana.
O diretor Abbas Kiarostami, no filme Lição de Casa, também se debruça sobre a mente dos pequenos em busca de respostas. Com problemas para ajudar seu filho com o dever de casa, o cineasta entrevista diversas crianças iranianas para saber qual é a opinião delas sobre as tarefas escolares. As respostas são inusitadas, mas muito elucidativas da relação das crianças com o ato de ser filmado. Já em Boy, Taika Waititi emula a percepção infantil da realidade para narrar a história do seu protagonista. Boy vive numa pequena cidade da Nova Zelândia. Com toda a sua inocência, o menino acredita que seu pai, que na verdade está preso, é um super-herói ocupado em salvar o mundo. Quando o homem foge da prisão, porém, a percepção do garoto é confrontada com a realidade.
O choque da infância com a ordem cruel do mundo é muito bem representado no clássico Conta Comigo. Baseado num conto de Stephen King, o filme tem um grupo de amigos como protagonista. Os quatro garotos ouvem falar que alguém foi morto por acidente na zona rural da cidade onde vivem e resolvem ir até lá encontrar o corpo. No trajeto, percebem que, mesmo a contragosto, a infância está chegando ao fim.
Assim, convidamos crianças de todas as idades – e as que ainda existem no coração do nosso público adulto – a conferir essa seleção de filmes em nossas salas. Ressaltamos, ainda, a atenção às classificações indicativas disponíveis em nosso material de divulgação, porque, por mais que todos os filmes sejam voltados para um público infanto-juvenil, alguns requerem maior maturidade para serem compreendidos. Essas tantas histórias de crianças alegres, inocentes e desalmadas, aguardam a criança que você puder ser e quiser trazer no CINUSP.