ESQUECER PARA LEMBRAR
A palavra memória nos remete, à primeira vista, ao conjunto de eventos que nos marcaram ao longo da vida. Momentos que, no fim, definem quem somos, e continuam a nos impactar conforme o tempo passa. Mas, para além dos acontecimentos em si, algo de muito interessante reside na forma como acessamos esses eventos, ou seja, como nos lembramos deles. Pois lembrar é um exercício e, acima de tudo, um processo marcado por perdas, rearranjos e ressignificações.
Por sua capacidade única de manipular o tempo e as imagens, o cinema, por meio de inúmeros realizadores ao longo de sua história, propôs formas de interpretar a rememoração enquanto processo, servindo também como meio para que ela se realizasse. Entre os dias 5 e 25 de agosto, o CINUSP apresenta a mostra Esquecer Para Lembrar, uma seleção de filmes dedicados ao esforço de voltar no tempo, juntar fragmentos e deles tirar algo, provavelmente algo novo.
Naturalmente, esse tema encontra ressonância em filmes que abordam a questão de um ponto de vista familiar, afinal, são essas as nossas memórias mais íntimas e pessoais. O Espelho, de Andrei Tarkovsky, é considerado um marco na relação entre cinema e memória, justamente por conjugar esse caráter íntimo e pessoal a um senso coletivo de rememoração, pareando a história e a vida de seus protagonistas à história russa. Nesse filme, Tarkovsky mistura imagens ficcionais a materiais de arquivo, além de poesias escritas e recitadas por seu próprio pai.
Em Aftersun, uma filha tenta recuperar traços da memória de seu pai a partir das gravações de uma viagem que fizeram juntos quando ela era criança. Ao fazer isso, observa as limitações e as lacunas que advém da tentativa de extrair algo de uma lembrança. Blue Black Permanent, único longa da diretora escocesa Margaret Tait, parte de uma premissa similar. Nele, vemos também uma filha que, ao tentar aceitar a trágica morte de sua mãe, revisita os momentos que viveu com ela na infância. Além disso, também navegamos pelas memórias de sua própria mãe, em um percurso lírico que nos remete ao trabalho de Tait enquanto poeta e curta-metragista experimental. A Metamorfose dos Pássaros, da portuguesa Catarina Vasconcelos, opera de maneira semelhante ao analisar a forma como três gerações de uma família se recordam, em sequência, uma da outra. Carregado de um tom autobiográfico, o longa se revela, aos poucos, uma docuficção, de modo que a própria diretora surge ao final como narradora e agente da rememoração em curso.
Esse aspecto autobiográfico também está presente em documentários propriamente ditos, que abrem espaço para que os realizadores reflitam de forma mais explícita sobre suas próprias vidas. É o caso de Já Visto, Jamais Visto, filme nacional de Andrea Tonacci que compila vídeos caseiros, imagens de arquivo e trechos de filmes de maneira pouco óbvia, proporcionando uma inusitada leitura da vida do cineasta e de sua família, assim como de sua relação com o cinema. Já em Reminiscências de Uma Viagem à Lituânia, Jonas Mekas registra seu retorno ao país onde nasceu, pela primeira vez em décadas, após ter sido obrigado a emigrar para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. O processo de retornar àquele lugar, que já não lhe pertence mais, faz com que Mekas repense toda a sua vida desde que de lá partiu.
Assim como no longa de Mekas, o uso do deslocamento físico como um importante fator que desencadeia a rememoração parece ser uma constante em vários filmes que versam sobre o tema. Le Clair de Terre, do francês Guy Gilles, acompanha um protagonista cujo arco principal é retornar a Tunísia, país em que nasceu mas do qual quase não se recorda, exceto pelo que viu em fotos e cartões postais. A abordagem de Gilles chama atenção pela justaposição de fragmentos de momentos passados e presentes com muita fluidez, traçando um paralelo direto entre a montagem fílmica e a forma como a memória opera cotidianamente em nossas vidas. Já em Memórias de Ontem, animação japonesa dirigida por Isao Takahata, do Studio Ghibli, o deslocamento da protagonista Taeko, uma jovem adulta frustrada com o rumo de sua vida, para o interior permite que ela acesse traumas e questões de sua infância há muito escondidas.
Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, também se beneficia da ideia de deslocamento. Os flashbacks que compõem o filme tem início enquanto o protagonista, um médico idoso, viaja de carro para receber um diploma honorário. Chama atenção a forma como Bergman é capaz de mesclar, de forma quase onírica, o passado e o presente dentro dos mesmos planos, com movimentos de câmera elaborados, jogos de espelhos e minuciosos enquadramentos. O espanhol Carlos Saura também cria um curioso efeito de rememoração em A Prima Angélica ao optar por não escalar um ator infantil para interpretar seu protagonista, Luis, em seus flashbacks. Vemos Luis interagir com as figuras, objetos e espaços de sua infância enquanto adulto, o que gera um contraste e um estranhamento que aludem ao caráter presentificado e criativo dessas recordações.
Espaços e objetos, em sua materialidade, podem constituir também lugares de memória, que atuam como gatilhos, dando início aos processos de rememoração. Em sua obra “Em Busca do Tempo Perdido”, o escritor francês Marcel Proust se vale desses componentes, explorando também a forma como simples sons e cheiros podem despertar elementos soterrados em nossas lembranças mais distantes. O Tempo Redescoberto, do chileno Raúl Ruiz, procura adaptar o último volume da obra de Proust, utilizando estratégias específicas de montagem, direção e cenografia para traduzir o senso temporal proustiano ao cinema. A exibição do filme no dia 21/08 será precedida por uma fala de Alexandre Bebiano, doutor em letras e pesquisador da obra do escritor francês. Já Visita, Memórias ou Confissões, de Manoel de Oliveira, demonstra preocupação similar com o espaço e os objetos como receptáculos da memória. Nele, somos convidados a acompanhar um misterioso casal que percorre, em uma mistura de estranhamento e familiaridade, os cômodos da casa em que o diretor viveu durante décadas. Esse filme pode, por si só, ser considerado um objeto de lembrança e recordação pois, apesar de gravado no começo da década de 80, foi lançado apenas em 2015, na ocasião da morte do cineasta.
O cinema pode, portanto, além de representá-la, atuar como parte ativa da rememoração. Em Pastoral: Morrer no Campo, longa japonês de Shuji Terayama, um diretor de cinema tenta fazer um filme que retrate sua infância, mas começa a duvidar dos métodos que escolheu para representar a si mesmo e seus familiares. Ele decide, então, confrontar suas próprias lembranças e ideias sobre seu passado, questionando até que ponto podemos mudar a forma que as coisas ocorreram, ainda que por meio da ficção. É justamente a partir da encenação fílmica de momentos passados que se constrói o longa iraniano Um Instante de Inocência, de Mohsen Makhmalbaf. Nele, acompanhamos a tentativa de Makhmalbaf de recriar uma situação que aconteceu com ele vinte anos antes, confrontando visões diferentes sobre o ocorrido e testando os limites do cinema enquanto mediador eficaz desse processo.
Por fim, a mostra contará ainda com o Especial Alain Resnais, um conjunto de sessões especiais dedicadas ao diretor francês que, sobretudo na primeira etapa de sua carreira, se empenhou em realizar filmes que dialogassem diretamente com a questão da memória e da rememoração. Ainda que por meio de abordagens distintas, os traumas históricos encarnados nas personagens de Hiroshima, Meu Amor, a memória labiríntica e abstrata de O Ano Passado em Marienbad, e a montagem desconexa de Muriel: O Tempo de Um Regresso e Eu Te Amo, Eu Te Amo fazem parte da tentativa de Resnais de acessar um “passado inexprimível”, nas palavras da crítica norte-americana Susan Sontag.
Assim como as personagens e os realizadores dessas obras, o CINUSP espera que os filmes da mostra Esquecer Para Lembrar permitam que você, espectador, embarque em uma jornada através de seu próprio passado, redescobrindo tempos há muito esquecidos, e reavaliando a força que as memórias exercem na sua vida.
Boas sessões!