EM CARTAZ

SAGRADO PROFANO


Primeiro houve luz. Depois, a separação entre luz e trevas permitiu a distinção das formas no mundo antes sem forma, e da passagem dos dias no mundo antes vazio. A metafísica da origem no mundo na tradição judaico-cristã se assemelha à sua manifestação em tempo e imagem, aspectos que constituem o cinema. Porém, longe do divino, o cinema se estabeleceu no seu início como arte popular relacionada ao espanto do espetáculo e à curiosidade científica ou voyeurística. 

Mesmo assim, o cristianismo rapidamente reagiu a essa tendência e tentou influenciar o cinema. Ainda no final do século XIX, coligações cristãs disputaram com ligas de ensino a função do recém inventado cinematógrafo, entre a divulgação científica e a educação religiosa. Já após o estabelecimento da indústria hollywoodiana nos EUA, o poder de entidades protestantes viria a impor por mais de 30 anos o Código Hays, um controle pela moral cristã da maior produção cinematográfica do mundo. Para não falar nas representações diretas de eventos bíblicos em blockbusters grandiosos.

De certa forma, as dinâmicas do cinema com o cristianismo espelham uma distinção essencial desta religião: entre aquilo que é sagrado, o bem divino e transcendental, e o profano, tudo aquilo que afasta de Deus e corrompe a virtude. A atualização do tempo sagrado da vida de Cristo nos rituais religiosos; uma forma de entretenimento massificado ligado à modernidade. Na mostra Sagrado Profano, o CINUSP exibirá entre os dias 16 de setembro e 6 de outubro uma série de filmes que representaram ou questionaram as contradições imanentes entre o inalcançável sagrado cristão, e a mundanidade do profano, seja no banal do dia-a-dia que não alcança os céus, seja no pecado que leva à condenação.

No imaginário do senso comum, muitas vezes estes conceitos acabam assumindo a forma de uma dicotomia entre bem e mal, céu e inferno, luz e trevas. O cinema aproveitou muito desta oposição no gênero do horror, encarnando as forças demoníacas no grotesco e perturbador de imagens chocantes. É o caso das memoráveis manifestações bizarras do demônio que possui uma garotinha em O Exorcista. Mas o mal pode residir nas frestas do bem, nas sombras geradas pela luz e em distorções de imagens sacras que as tornam infamiliares. Em O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, o jogo de luz da arquitetura colonial do interior de Minas e as texturas da paisagem pedregosa simbolizam os conflitos do padre tentado pelo desejo. Já no filme polonês Madre Joana dos Anjos, um sorriso malicioso com os olhos arregalados mostra repentinamente que a casta freira Joana está possuída pelo demônio. Essa coexistência do religioso e do obsceno chega numa alta saturação em Vício Frenético, em que a montagem e a cenografia colocam em constante choque o submundo de drogas e sexo de um tenente corrupto, e as imagens da igreja espalhadas por todo lado.

Mas existe uma contradição interna, da própria igreja enquanto instituição humana com que deve instituir um discurso oficial sobre um Deus acima da linguagem. Nesse sentido, não mais o claro-escuro, mas os tons de cinza e os enquadramentos sóbrios de Fé Corrompida veiculam a ambiguidade dos questionamentos de um padre que descobre a corrupção de dentro da igreja. A própria carne, vista pelo realismo da câmera, pode expressar a tensão entre o corpo natural e a sensação do divino que transfigura o rosto no êxtase religioso. É o que faz Dreyer no clássico A Paixão de Joana D’Arc. Neste caso histórico, a própria igreja iria posteriormente incorporar algo que condenou, canonizando a mesma Joana que lançaram à fogueira. Uma história semelhante de religioso que por mais que siga perfeitamente a fé cristã, é condenado pela igreja, é a do padre excomungado protagonista de Nazarin. Buñuel filma a paisagem miserável e deteriorada, numa fotografia clara e nítida, contrapondo constantemente a crueza do mundo com o idealismo religioso de Nazário.

Para além dessa incorporação das questões do cristianismo no cinema, muitos filmes afirmam sua independência realocando componentes do sagrado para pensarem questões diversas.  Godard, ao trazer a divina concepção da Virgem para a vida de uma jovem suíça dos anos 80, Eu Vos Saúdo Maria encontra um conteúdo filosófico renovado na história bíblica. O milagre se torna uma deixa para um lirismo que flutua entre os pólos do desejo, corpo e urbanidade, e da virtude, natureza e bucolismo. Condenado pelo próprio Papa João Paulo II, o filme protagonizou um caso emblemático de censura no Brasil, posterior à redemocratização. Em pleno governo Sarney, após reações fervorosas de grupos cristãos, a legislação da ditadura foi aplicada para vetar a exibição do filme. Para abordar a presença polêmica do sagrado e do profano no filme, a sessão do dia 19/09 contará com um debate com a pesquisadora e professora de ciências das religiões Leyla Brito da Silva. 

Em outra chave, Pasolini realiza uma reflexão mais formal em O Decameron, sua adaptação de nove histórias do livro medieval homônimo. O questionamento dos hábitos da Itália do século XIV do livro é filmado de forma a espelhar a arte sacra da época, gerando ambivalências constantes entre tipos de representação. A oposição toma a forma da diferença entre sons e imagens em Para Sempre Condenadas e Diário de uma Freira Africana. No primeiro, Su Friedrich justapõe a narração do desejo homoafetivo de uma freira a um fluxo de cenas alusivas e cada vez mais eróticas. Já no segundo, o rosto angustiado da mulher africana cristianizada, a narração poética das suas reflexões e os tambores da música ancestral apontam cada uma para um lado. Desta forma, a cineasta Julie Dash cria um estado de angústia permanente.

O deslocamento pode ser até mais radical quando, levando as normas e tradições ao paroxismo, as fronteiras entre Deus e o mundo são atenuadas. Sebastiane, na sua representação lânguida e homoerótica da vida de São Sebastião, confunde êxtase religioso e sexual, santidade e repressão, num jogo de olhar e desejo. Os Demônios mostra a blasfêmia como um paradoxo. No filme, a própria igreja é responsável por criar cenas dantescas, misturando o barroco e o demoníaco, no intuito de forjar a culpa de um padre que questiona os interesses políticos do Cardeal Richelieu. Essas possibilidades são esquematizadas quase didaticamente em Clube dos Pervertidos, em que a premissa se baseia numa inversão lógica: o que é profano, o sexo, se torna sagrado, num culto de depravados que perturba uma cidade purtitana. 

Uma forma condensada desses oxímoros é a de que, no fim das contas, não existe sagrado se não houver o profano para se diferenciar dele, e vice-versa. A partir desta premissa, o filme japonês Love Exposure tem como protagonista um jovem filho de um padre que, como não cometia nenhum pecado, não tem o que confessar, e assim dar razão ao sacrifício de Cristo. Por isso comete inúmeros delitos para se tornar um “cristão melhor”. De forma paralela, as freiras de Almodóvar em Maus Hábitos cultivam cada uma seu pecado particular, quase numa forma de justificar o isolamento no convento e a existência mesma da instituição. 

A partir deste conjunto variado de filmes, a mostra convida o espectador a enfrentar os desafios deste dilema que, mais que se referir apenas ao cristianismo, reflete uma questão filosófica fundamental de todo ser humano. O que podemos ver e falar sobre, o que está além dos sentidos e da linguagem, e onde estas instâncias se encontram. 

Boas sessões!