EM CARTAZ

SAKESPEARE REVISITADO


Você conhece as histórias, as personagens e as falas; mas algo está diferente. Hamlet segura um crânio… de boi; Macbeth é um samurai; e Romeu e Julieta moram em Nova York. Dos dias 07 a 27 de outubro, a mostra Shakespeare Revisitado coloca em cartaz no CINUSP adaptações de peças de William Shakespeare que são tudo, menos tradicionais.

Na Inglaterra elisabetana, propriedade intelectual ainda era um sonho distante e, num período em que o teatro existia para prover entretenimento às massas,  no momento em que um ator pisasse no palco e proferisse sua primeira fala as peças de Shakespeare tornavam-se do mundo. Entregues à consciência coletiva, o que conhecemos hoje como os textos do dramaturgo são, muito provavelmente, uma combinação do trabalho de várias mãos que à época adicionaram pontos, marcações e rubricas para fazer deles suas próprias produções. Nos 19 filmes aqui selecionados, cineastas do mundo inteiro deram um passo a mais - bem largo - nesse exercício de repensar as mais clássicas narrativas do teatro e as reconfiguraram radicalmente – tudo isso enquanto as adaptavam para o cinema.

Um dos mais conhecidos e reconhecíveis textos de Shakespeare, “Hamlet” já foi objeto de reinterpretação incontáveis vezes. A trama do filho que retorna à casa para vingar a morte do pai é a base de A Herança, de Ozualdo Candeias, filme que transporta a história do escritor inglês para o ambiente rural brasileiro, destacando-se pela forma como valoriza a fotogenia do campo e os sons típicos desse espaço -  como o canto dos pássaros e as rodas de viola caipira. A sessão do filme no dia 22 de outubro, às 19h, será acompanhada de um debate com Valéria Marchi, atriz, diretora e pesquisadora de teatro. Já em Ser ou Não Ser, Ernst Lubitsch transforma essa tragédia paradigmal em uma comédia sagaz. Considerado uma das obras-primas do diretor, o longa faz da peça cenário para uma trama de espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, figurando uma sátira que funciona, também, como crítica política.

Para fechar a seleção de hamletianos, ainda será programada uma sessão especial de O Rei Leão, clássica animação que desloca as intrigas de poder e vingança dessa tragédia para os leões da Savana africana.

Como modo de dramatizar também os reinados reais, principalmente os das Ilhas Britânicas, o “bardo de Avon” escreveu uma coleção de peças históricas. A narrativa do rei “Henrique IV”, que enfrenta problemas tanto políticos quanto familiares, transforma-se na de Garotos de Programa, de Gus Van Sant, uma das produções mais populares do New Queer Cinema: aqui, o filho rebelde de um prefeito embarca com seu amigo numa jornada de autodescoberta. No dia 17 de outubro, a sessão das 19h do filme será seguida de um debate com o professor John Milton, especialista na obra de Shakespeare.

Nesse mesmo texto, o Príncipe Hal, futuro Henrique V, é acompanhado de seu inseparável parceiro Sir John Falstaff. É sobre essa personagem, que figura em outras peças de Shakespeare, que se debruça Orson Welles em Falstaff - O Toque da Meia Noite. Que nem em seu Otelo e seu Macbeth, o cineasta encarna a personagem titular e, dessa vez, transita entre mais de uma história para trazer à vida o boêmio Falstaff.

Assim como Welles, um número notável de realizadores se inspirou em Shakespeare e o reinterpretou mais de uma vez. Muito antes de Ran, sua marcante adaptação de “Rei Lear”, Akira Kurosawa encontrou em “Macbeth” a inspiração para um de seus mais celebrados filmes. Trono Manchado de Sangue adapta fielmente a trama de intrigas palacianas que constitui a obra original, mas a desloca ao Japão feudal, adicionando ao texto shakespereano elementos culturais tipicamente japoneses, que se manifestam tanto visualmente quanto nas atuações, com destaque para Toshirō Mifune, colaborador frequente e prestigiado do diretor.

Seis anos após sua adaptação de "A Tempestade", o britânico Derek Jarman optou por uma fonte de inspiração singular na obra de seu conterrâneo: os sonetos. Em Diálogos Angelicais, o ritmo vagaroso e onírico das imagens desenha momentos de intimidade entre dois homens, narrados por uma sequência de catorze sonetos de amor de Shakespeare.

Do outro lado do Atlântico, os textos do bardo também caíram nas graças do argentino Matías Piñeiro, que desde 2011 já dirigiu seis produções que enfocam os papéis femininos nas comédias shakespearianas. Em uma sessão dupla dedicada ao cineasta, o curta Sycorax, que busca dar voz à bruxa renegada de “A Tempestade”, acompanha Viola. Neste último, uma câmera próxima segue um grupo de atrizes que ensaia uma produção de “Noite de Reis” em Buenos Aires, até o momento em que o texto começa a transbordar do papel para as suas vidas pessoais.

Capturar a relação entre personagem e intérprete a partir da interação com as obras de Shakespeare também foi escolha dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani em César Deve Morrer, que acompanha um grupo de presidiários de segurança máxima em Roma numa produção de “Júlio César”. Com uma fotografia que eleva os pátios e corredores da prisão e nos lembra do que foi antes o coração do Império Romano, essa docuficção aproxima a grandeza do dramaturgo às parcelas mais renegadas da população italiana.

Seguindo um caminho mais jovial, está Sorrisos de Uma Noite de Amor, de Ingmar Bergman. Ao adaptar a comédia fantástica “Sonho de Uma Noite de Verão”, o cineasta transpõe as tramas e os triângulos amorosos do texto para a alta sociedade sueca, produzindo uma espirituosa comédia – anterior aos longas mais austeros e condecorados de sua filmografia.

Por falar-se em obras notáveis e prematuras, foi logo nos primeiros anos de sua carreira de dramaturgo que Shakespeare eternizou a história de dois dos amantes mais famosos do imaginário popular. O amor proibido de "Romeu e Julieta", já tanto reimaginado, atravessa séculos para estrelar o clássico Amor, Sublime Amor – que musica o trágico destino de dois membros de gangues rivais na Nova Iorque dos anos 1950.

Enquanto isso, um gângster também vê-se numa teia de paixões e traições em Omkara, drama indiano que adapta "Otelo". Nele, um elenco engajado ajuda a manter o ritmo pujante da peça. O filme será exibido em conjunto com Othello-67, um curta soviético que em um minuto reproduz a tragédia shakespeariana. Por outro lado, em uma tematização muito diferente da do texto original, o Mouro de Veneza também serviu de inspiração para Ao Despertar da Paixão. Com planos fascinantes do faroeste estadunidense, o longa agilmente acomoda a narrativa aos moldes do gênero western.

Para uma de suas últimas peças, acredita-se que Shakespeare tenha metaforizado sua própria vida e obra na personagem de Próspero, de "A Tempestade". Numa resposta à altura do dramaturgo, o cinema de vanguarda de Peter Greenaway propõe uma carregada reconfiguração imagética deste texto, experimentando com uma combinação de modalidades artísticas justapostas em tela no sinestésico A Última Tempestade. Também uma meditação sobre arte e a ideia de “autor”, o Rei Lear de Jean-Luc Godard trabalha não só com o drama homônimo, mas também com outros textos do bardo, que ajudam a tematizar a busca de um descendente de Shakespeare pela restauração de suas obras após o desastre de Chernobyl.

Para fechar a programação, a mostra também conta com uma batalha entre dois filmes: 10 Coisas Que Eu Odeio Em Você (“A Megera Domada”) e Todos Menos Você (“Muito Barulho Por Nada”). Ambos brincam com a perspicácia das peças que adaptam e inevitavelmente terminam em uma conciliação apaixonada à la Shakespeare. Durante a mostra, o público terá a chance de votar, através do Instagram do CINUSP, pela exibição de uma dessas comédias românticas no dia 18 de outubro, às 16h.

Mesmo quase quinhentos anos depois, o exercício de abordar a obra de Shakespeare como uma tela em branco para a criatividade segue vivo no gênio artístico. Nas próximas semanas, o CINUSP convida o público a conhecer e reconhecer velhas narrativas numa seleção de obras que provam haver muito mais entre um texto original e sua encenação do que podemos imaginar.

 

Boas sessões!