TREVAS


O que se esconde no escuro de uma mansão mal assombrada? Quais os desejos mais profundos de um insaciável vampiro? O que o enquadramento de uma câmera de cinema não consegue ver? É nas trevas que se escondem os mais misteriosos segredos e será através da arte de luz e sombras que o CINUSP buscará respostas durante a mostra TREVAS entre os dias 29 de outubro a 17 de novembro.

O cinema sempre se interessou pelos personagens e cenários obscuros e, principalmente, pela estilização dos universos trevosos. Através de grandes obras que se apropriam do imaginário gótico, a sétima arte retirou das sombras histórias que atraem o público e despertam uma curiosidade macabra em seus espectadores. 

Um grande exemplo do amor do cinema clássico pelo obscuro é Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror, dirigido pelo icônico F.W. Murnau. O filme se consagrou como um clássico do Expressionismo Alemão, movimento caracterizado pela busca de uma representação subjetiva do mundo que fosse capaz de revelar as angústias da existência humana. Através de imagens distorcidas que se assemelhavam a pesadelos, ele encontrou nas histórias inquietantes e na mise en scène hiperbólica o seu estilo e entregou com o vampiro Nosferatu uma das mais clássicas representações de personagens obscuros que se escondem nas trevas. A figura do vampiro se tornou extremamente presente no universo da sétima arte e é apoiando-se nessa antiga tradição que Francis Ford Coppola dirige o seu Drácula de Bram Stoker. É curioso observar que Coppola atualiza os filmes de vampiros com estrelas de cinema dos anos 90, porém, distanciado por 70 anos do clássico de Murnau, ainda busca recursos do cinema clássico para gravar a obra, recusando os efeitos digitais já tão presentes na década de 90. A história dos dois filmes segue uma figura monstruosa que se apaixona perdidamente por uma mulher, buscando de todas as formas alcançar o amor dela. 

Os amores trágicos rendem grandes filmes obscuros. É o caso de O Corvo, ícone do cinema gótico noventista. O filme traz consigo o peso da morte precoce de Brandon Lee, ator que interpreta o protagonista, devido a um trágico acidente no set. No entanto, há de se observar os méritos do filme, que não são poucos. Através de enquadramentos inventivos, uma montagem ágil e direção de arte extremamente estilizada, O Corvo entrega uma narrativa poderosa e cheia de ação contando com uma trilha musical repleta de artistas icônicos tais como The Cure e Nine Inch Nails. O Corvo nasce a partir de uma HQ do final dos anos 80, se colocando dentro da tradição de adaptações de obras trevosas da literatura, algo sempre muito comum no cinema mundial. Grande exemplo disso é o filme A Queda da Casa de Usher, de 1928 que também adapta literatura para o cinema. Como é comum do autor Edgar Allan Poe, a trama mergulha no terror para trazer temas filosóficos para debate e tais temas surgem com perfeição na obra do importante diretor e teórico de cinema francês Jean Epstein. A trama acompanha um homem que vive com sua esposa moribunda. Temendo perder a mulher, o homem passa os dias pintando quadros dela na cabana reclusa que dividem. 

As narrativas se passando em ambientes reclusos sempre foram cenários muito propensos para narrativas góticas. Os filmes Fascinação e Os Inocentes se aproveitam desta tradição em suas rodagens de forma distintas. O primeiro nos apresenta um castelo medieval onde um bandido decide se esconder e encontra duas mulheres que esperam por convidados soturnos. O filme utiliza o isolamento para criar um clima de tensão sexual entre os personagens, como era comum do diretor Jean Rollin, especialista em thrillers sexuais e, inclusive, muito elogiado pelo diretor brasileiro Carlos Reichenbach por isso. Já Os Inocentes isola uma babá cuidando de duas crianças em uma enorme mansão mal assombrada. Com a câmera se apropriando do ponto de vista subjetivo em diversos momentos, o filme passa ao espectador a sensação de descobrirmos o ambiente junto com a protagonista, trazendo a tensão desses espaços vazios e obscuros para dentro da sala de cinema. A Orgia da Morte coloca o espaço isolado mas não vazio como temática, com um príncipe satânico promovendo um baile. A direção de arte exuberante e o curioso uso do tecnicolor para um filme trevoso colocam essa obra do diretor Roger Corman, famoso pelos filmes obscuros, como um exemplo diferente de como se apropriar do gótico. 

No italiano Mata, Baby, Mata mergulhamos em um vilarejo maldito. O horror gótico é um subgênero muito interessante do cinema de fantasia e é nele que o diretor Mario Bava busca inspiração para dirigir sua obra. Como um clássico giallo, subgênero de filmes italianos de terror violentos e psicologizantes, Mata, Baby, Mata encontra no suspense e na violência estilizada seu charme para contar a história de um legista investigando um assassinato misterioso. A violência estilizada aparece de forma bastante criativa também em À Meia Noite Levarei Sua Alma, dirigido pelo icónico José Mojica Marin. O filme de estréia do famoso personagem Zé do Caixão aglutina diversos elementos de diversas mídias e religiões para criar um terror com alma brasileira. A violência é sempre muito estilizada e impressiona ainda mais quando o contexto totalmente independente do filme é colocado em perspectiva, sem dúvidas uma grande pérola do cinema nacional. 

As influências do imaginário trevoso não se restringem ao cinema live action. No mundo das animações temos Angel’s Egg como exemplo do potencial estético das trevas nos animes. Descrito constantemente como uma pintura animada, Angel’s Egg inspira-se claramente no imaginário estético gótico para criar seu futuro pós apocalíptico e nos mostra o nível de detalhamento e apuro visual que cabem no universo das animações trevosas. Colocando sombras de monstros como vilões e utilizando de uma montagem lenta para criar uma atmosfera densa, a animação japonesa nos apresenta a estética criada pelo diretor Mamoru Oshii, que anos depois viria a criar Ghost in The Shell. Ainda dentro do universo das animações está Coraline e o Mundo Secreto. Filme que traumatizou gerações de crianças com seus momentos bizarros, Coraline utiliza aspectos clássicos da criação de universo da literatura gótica para contar a história de uma menina que se muda para os subúrbios e encontra uma passagem secreta para um mundo novo.  Coraline utiliza o fantástico para colocar a personagem mergulhando em si mesma e nas mudanças pelas quais está passando. Algo semelhante acontece em Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos. Uma das grandes obras da Nova Onda Checa, o filme dirigido por Jaromil Jireš conta a história de uma jovem atravessando a puberdade que começa a ser perturbada pela chegada de um homem monstruoso que passa a persegui-lá. O filme coloca Valerie em um momento de alterações muito profundas em sua vida e utiliza do sobrenatural para demonstrar o potencial assustador dessas mudanças e da chegada de uma nova fase da vida. Com uma direção de arte deslumbrante e uma narrativa carregada de simbolismos e de folclore, Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos é uma obra essencial de um dos movimentos mais interessantes da história do cinema mundial. 

É claro que o mundo das trevas e os universos sombrios também podem oferecer filmes divertidos e engraçados e isso pode ser comprovado em Elvira: A Rainha das Trevas e Familia Addams, que competem por uma sessão na batalha Família das Trevas.  E, falando em diversão mesmo nos mundos soturnos, é natural que o nome do diretor Tim Burton surja na mente dos cinéfilos. Famoso por sempre buscar inspiração no imaginário gótico, Burton se consagrou como um dos diretores americanos mais inventivos da sua geração e marcou o cinema com grandes obras como  Beetlejuice - Os Fantasmas Se Divertem, Edward Mãos de Tesoura, Batman: O Retorno, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça e A Noiva Cadáver. Mais legal do que cada um desses filmes é saber que todos poderão ser vistos no Noitão Tim Burton que acontece na noite do dia 1 de novembro, fim de semana de Halloween, melhor data possível para comemorar os filmes obscuros. 

Então vista o seu traje mais trevoso, passe sua maquiagem mais obscura e venha observar o assustador potencial dos filmes que mergulham nos personagens e cenários mais assombrosos possíveis. Caminhe com o CINUSP em direção às Trevas. 

Boas sessões!