REMAKES
Entre o imaginário coletivo da cultura e a singularidade artística, é comum que filmes ecoem uns nos outros. As incontáveis versões de blockbusters que povoam as salas, gradualmente perdendo o sentido de existirem, apontam para a motivação econômica da prática. De fato, a indústria tenta reproduzir e replicar sucessos desde o primeiro cinema, quando desreguladamente se reaproveitavam histórias. No entanto, o pretexto do remake também é uma oportunidade para que diretores se apropriem de forma crítica e inventiva de narrativas, personagens e conflitos já trabalhados antes.
Entre representações emblemáticas de narrativas familiares ao público, trocas culturais potentes e inusitadas e releituras pessoais e únicas, a mostra Remakes exibirá - entre 27/01 e 16/02 - sete duplas e um trio de filmes que exemplificam como grandes obras deram origem a recriações igualmente interessantes. Exibidos em conjunto, será possível comparar as maneiras únicas como cada versão mobiliza ideias, sentimentos e sensações diferentes a partir de um mesmo material, algumas vezes se iluminando mutuamente e permitindo uma nova compreensão tanto do original, quanto do remake.
O impulso de revisão de clássicos teve grande importância quando movimentos de renovação buscaram inspiração para novas estéticas. Se tratava de criar novas visões a partir da extração de elementos daqueles temas e estilos que reverberavam no presente. Este retorno por vezes tomou a forma de novos filmes. Na chamada Nova Hollywood, Brian De Palma é talvez o diretor que mais se destaca no constante uso de citações e referências. No seu cinema a estética de Hitchcock, Antonioni, e outros é destilada e saturada, com ironia e perícia, em mundos intertextuais feitos da própria ilusão do cinema. Assim, a síntese das contradições do sonho americano nos anos 1930 feita por Howard Hawks em Scarface - obra prima do cinema de gangster - tem sua tragédia intensificada pela violência do filme de De Palma, quando as mesmas ilusões persistem em 1983.
A recorrência de histórias como essa talvez seja um indicativo de que filmes, como mitos, podem ter algo de universal. Apesar de sua especificidade, muitas vezes revelam algo sobre questões essenciais que ressurgem em diversos contextos. Quando em 1951 Joseph Losey, ligado à arte crítica e engajada de Brecht, tem a oportunidade de refilmar o clássico alemão M, dirigido por Fritz Lang em 1931, ele aproveita para fazer um meta-comentário. Se Lang recria Berlim de forma expressionista em estúdio para uma análise social, Losey devolve o enredo ao mundo, mostrando a geometria real que coordena a sociedade das ruas de Los Angeles. Apesar das visões distintas, a comoção generalizada do caso do assassino de crianças serve como metáfora tanto para a paranoia que permeava a sociedade alemã logo antes do nazismo, quanto para o medo do comunismo disseminado nos EUA durante a Guerra Fria.
No paradoxo entre a necessidade de novidade e o desejo de ser bem sucedido, não é raro a apropriação de outras filmografias quando se vê que uma fórmula deu certo. Recentemente, é comum que Hollywood faça esse gesto com cinemas emergentes na Ásia, muitas vezes se resvalando na baixa penetrabilidade de filmes não falados em inglês no público estadunidense para comprá-los, e então apresentá-los com roupagem norte-americana. Menos comum é um suspense de estrondoso sucesso em Hong Kong, como Conflitos Internos, cair na mão de um diretor reconhecido por seus traços autorais, como Martin Scorsese. A sua versão, Os Infiltrados, foi, também, muito bem recebida.
Um caso às avessas desse tipo de apropriação ocorreu entre Sergio Leone e Akira Kurosawa. O diretor japonês consolidou o gênero de filmes de samurais com clássicos como Yojimbo, remontando ao passado japonês, mas profundamente influenciado pelo cinema noir e western dos EUA. Quando Sergio Leone foi buscar uma base para seu primeiro western spaghetti, a inspiração narrativa e estilística direta não foi simplesmente a tradição americana, mas a transposição do cinema de gênero estadunidense feita no filme de Kurosawa. Por Um Punhado de Dólares é então uma dupla tradução do cinema clássico hollywoodiano. Outro exemplo dessas rotas improváveis que as influências podem percorrer no mundo do cinema foi quando, na década de 80, o estúdio honconguês Shaw Brothers se apropriou do mote do maior suspense do francês Henri-Georges Clouzot. As Diabólicas resvala na sua seriedade e na tensão lenta e gradual, enquanto na sua versão pós-moderna, Hex, as convenções do gênero entram num loop paródico cada vez mais delirante. O suspense se torna, por exagero, horror exploitation.
Numa conjugação entre intercâmbios internacionais, a inspiração crítica de novas gerações, e a perenidade de histórias emblemáticas, estão os dois remakes de Tudo Que o Céu Permite. O diretor do original, Douglas Sirk, foi responsável por uma nova leva crítica e profundamente estilizada de melodramas produzidos pela Universal Pictures nos anos 1950. Esses filmes foram umas das maiores inspirações da principal figura do novo cinema alemão, Rainer Werner Fassbinder. Utilizando-se da herança brechtiana, O Medo Consome a Alma imbui de distanciamento o romance impossível dos protagonistas. A gravidade social dos conflitos é incrementada, na mesma medida em que o cenário e as luzes caleidoscópicas feitas em estúdio, que cercavam os personagens de Sirk, aderem à superfície árida das locações alemãs. Já Todd Haynes, figura marcante do chamado New Queer Cinema, traz à tona questões de sexualidade e racialização em Longe do Paraíso. O que era muitas vezes escondido no cinema clássico, devido ao conservadorismo e a pressões de censura como o Código Hays, ganha o primeiro plano no filme de 2002.
A relação com o passado, no entanto, não é um fator importante apenas na renovação das gerações de realizadores. Diretores mais velhos que já passaram por momentos importantes da História do cinema podem, num segundo momento, olhar em retrospecto e aprofundar elementos que ainda consideram relevantes. Quando Julio Bressane filmou Matou a Família e Foi ao Cinema em 1969, ser marginal era ser herói, e o grupo de cineastas do qual fez parte acreditava numa estética do choque e do ruído. Se apropriando criticamente tanto do cinema comercial quanto da vanguarda, Neville D’Almeida também fazia parte desse movimento. Em 1991, no entanto, quando Neville retoma o filme de seu amigo Bressane, as cores de um cinema noventista, e co-produzido pela Embrafilme, deixam evidente que se trata de um país muito diferente. Ainda sim, a tentativa de relacionar experimentação ao cinema popular, agora através do erotismo, persiste em nova chave.
Outro exemplo é quando Yasujiro Ozu escolhe refilmar, ele mesmo, em 1959, a sua história sobre uma companhia de teatro kabuki, já adaptada em 1934 em Ervas Flutuantes. O cinema de Ozu, sempre atento à tensão entre tradição e modernidade, já havia, por sua vez, mudado. A apropriação já totalmente aperfeiçoada do som e da cor dos seus últimos filmes inexiste na versão silenciosa e preto e branca de 34. A dialética cultural no Japão também se dava em novos termos, agora marcada pelo conflito gerado pela presença cultural do imperialismo norte-americano. Ver os dois filmes é ver, em síntese, o que pode persistir e o que pode mudar, no cinema e num país, ao longo de um quarto de século.
Nestes intercâmbios variados, o cinema dá vida a si próprio, mostrando que o remake pode ser uma maneira do cinema refletir, atualizar e transformar sua própria História.
Boas sessões!