EM CARTAZ

SANGUE NOS OLHOS


Um dos julgamentos mais importantes da história, que mudou os rumos não só da Filosofia, mas da sociedade ocidental, foi o de Sócrates. A acusação de que o mesmo perturbava a ordem da cidade fez com que o filósofo fosse condenado e sentenciado à morte. Em seus últimos dias de vida, Sócrates receberia a visita de Críton, amigo rico que se oferece para pagar pela fuga do condenado, ao que ele nega. No diálogo, que será batizado com o nome do apoiador, Sócrates questiona: seria justo retribuir uma injustiça com outra? Apesar de sabermos que na época a noção de justo e injusto se dava de formas diferentes da atualidade, o questionamento permanece: seria a vingança uma forma de justiça?

 

Sendo um mote comum no cinema, a vingança pode abarcar desde questões extremamente pessoais até de cunho coletivo e político. Ainda que em alguns momentos possa ser motivada por um desejo de justiça, não é o que acontece sempre. Em muitos casos, por vezes os que mais nos interessam, só acompanhamos a trajetória do vingador que, valendo-se de meios obscuros e duvidosos, tenta concluir sua vingança, custe o que custar. 

Para mostrar como um tema tão abrangente pode ser abordado na sétima arte, entre os dias 17 de fevereiro e 9 de março o CINUSP apresenta Sangue nos Olhos, com uma seleção de filmes cujas personagens estão determinadas a buscar vingança, e, às vezes, justiça.

 

A questão da vingança e suas dimensões ecoam na humanidade há séculos, sendo retratadas em obras clássicas, como é o caso das tragédias de Eurípides, dramaturgo grego  autor de “Ifigênia em Áulide” e  “Medeia”. Em Ifigênia vemos Agamemnon, que após despertar a ira de Ártemis, deve oferecer sua filha como sacrifício, sendo essa uma inspiração livre para Yorgos Lanthimos em O Sacrifício do Cervo Sagrado. No caso do longa, que mantém elementos trágicos e ritualísticos da peça, acompanhamos um cirurgião, que culpado pela morte de um homem, passa a conversar com o filho do mesmo, que lhe exige sacrifícios como forma de vingar a morte do pai. Já em Medeia, a feiticeira do amor, adaptação de Pasolini inspirada na segunda peça, vemos uma história de vingança que atravessa épocas sem perder a imponência. Após trair a família para ajudar seu marido a conquistar o velocino de ouro, Medeia é traída pelo mesmo com a princesa de Corinto. A personagem, já temida antes por vir de uma família de feiticeiras, passa a ocupar o lugar de mulher desonrada, exilada, e temida. Para elucidar a importância da peça e de que forma Pasolini a adapta, haverá no dia 06/03 um debate com a Profª Adriane Duarte, do departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP. 

 

Também valendo-se da posição de mulheres acusadas de bruxaria, que, além dos planos materiais podem apoiar-se no espiritual e naquilo que foge à razão como forma de vingança, está O Espelho da Bruxa, do diretor mexicano Chano Urueta. O terror, extremamente atmosférico, acompanha Elena, sobrinha de uma bruxa satanista, que descobre através da tia que seu marido planeja matá-la para que possa viver com a amante. Ao não conseguir escapar de seu destino, Elena passa a assombrar sua antiga casa através de um espelho. O filme será exibido com o curta russo pré-soviético A Vingança do Cinegrafista, que através de técnicas avançadas de stop-motion com insetos mortos, conta a história de um besouro que, munido de sua câmera, passa a filmar os encontros amorosos da sua esposa com o amante. Continuando na esfera da traição romântica, exibiremos o clássico da sessão da tarde de Susan Seidelman, Ela É o Diabo. A comédia exibe de forma totalmente cômica e descabida a vingança de uma mulher traída, onde podemos ver a ira de Ruth, uma caricata mulher fora dos padrões de beleza, que dedicou sua vida inteira ao cuidado do marido e dos filhos, ao ser trocada de repente por Mary Fisher, uma rica dondoca interpretada por Meryl Streep.

 

Retomando a dimensão de destino e vingança a se cumprir, Daratt, condensa tais questões junto às noções de trauma pós-guerra no Chade, numa forma “olho por olho, dente por dente”. A história acompanha Atim, um adolescente, que após a notícia de perdão aos criminosos de guerra dado pelo governo, recebe de seu avô a missão de vingar a morte de seu pai. Ao tentar iniciar sua vingança, o jovem conhece outras faces do assassino, arrependido de seus atos violentos e que tenta construir uma relação de pai e filho com Atim, baseada em repulsa e carinho. Seu diretor, Mahamat Saleh-Haroun, conta que a ideia para o filme surgiu após testemunhar um órfão da guerra que matou o assassino do seu pai. O acontecimento evocou nele o questionamento de se aquela criança havia sido treinada a vida inteira para cometer o crime e quais seriam os resultados dessa ação em sua vida. Para além deste causo do país, o diretor também utiliza muitas referências do western, gênero que costumeiramente aborda histórias desse tipo. Teremos como seu representante Os Imperdoáveis, do ator e diretor Clint Eastwood. O longa, assim como Daratt, trabalha com uma noção de dualidade humana, entre o bom e o mau, o predador e a vítima e a sensação de soterramento de uma vida que gira em torno da violência. 

 

Um subgênero que também é marcado por narrativas de vingança é o blaxploitation,  carregado de suas ambiguidades. Coffy, de Jack Hill, cineasta cujo trabalho inspirou outros grandes nomes da indústria como Coppola e Tarantino. O longa acompanha Coffy, interpretada por Pam Grier, que após ter a irmã vitimada por uma overdose passa a praticar atentados contra golpistas, traficantes e cafetões que sustentam o sistema que diariamente oprime e mata pessoas negras no mundo. 

 

Quentin Tarantino, conhecido por seus filmes sanguinolentos, dirigiu uma das obras de vingança mais memoráveis nos anos 2000: Kill Bill. A obra mescla gêneros como wuxia, western e exploitation e tem Uma Thurman interpretando a icônica personagem conhecida simplesmente por "Noiva", recém saída da gangue de matadores de Bill, seu ex-amante, tenta mudar de vida casando-se com outro homem. No entanto, acaba tendo seus planos interrompidos na própria cerimônia por Bill. Outro filme que partilha dessa “vingança das noivas”, é A Noiva Estava de Preto, thriller de Truffaut. Na adaptação, Jeanne Moreau prova que a vingança é um prato que se come frio e interpreta uma viúva que persegue e mata os homens mulherengos e viciados que assassinaram, por pura diversão, seu marido no dia de seu casamento.

 

Além de Tarantino, outro diretor que se dedicou com afinco ao tema é Park Chan-wook. Criador da célebre “trilogia da vingança”, composta por Mr. Vingança, Oldboy e Lady Vingança, selecionado para a mostra. Nele, uma mulher presa injustamente decide se vingar dos responsáveis por todo o sofrimento que lhe foi perpetrado durante a prisão, mas em sua busca implacável é consumida pelas sombras do próprio desejo. O mesmo acontece com o personagem principal de Demônios, de Toshio Matsumoto. No longa acompanhamos Gengobe, um samurai, que após sofrer um duro golpe de uma gueixa tenta a todo custo recuperar sua honra. No entanto, essa tentativa de reconstrução e a decisão de sua vingança também o deixam num lugar sombrio, enclausurado pelo peso das suas próprias escolhas que são refletidas na construção de planos e movimentos de câmera durante o filme. 

 

Tentamos, ainda que parcialmente, abarcar o sub-gênero rape and revenge (estupro e vingança, trad. literal). Para tratar de um assunto tão sério como a representação da cultura de estupro, optamos por algo que o abordasse de forma politizada. 

Conhecida por teorizar o estupro em suas obras literárias de cunho autobiográfico, Virginie Despentes dirigiu junto da ex-atriz pornô Coralie Trihn-Thi, Baise-moi. O longa, cuja tradução literal significa “me foda”, é baseado no romance homônimo da autora que tem como base o estupro que a mesma sofreu na adolescência, quando junto de uma amiga resolve pedir carona para shows de bandas punk da cidade. Partindo disso, o filme acompanha uma dupla de amigas abaladas por uma série de agressões cotidianas que embarcam numa jornada de violência e matança contra os homens e os poderosos, invertendo papéis de gênero típicos entre vítima e algoz. Foi censurado na França como filme X, isto é, pornográfico, causando comoção entre feministas, incluindo o filósofo Paul Preciado. Filmado em vídeo, numa estética precária, o longa compartilha essas caracteristicas com o curta Possibly in Michigan, de Cecelia Condit, diretora conhecida por suas obras de cunho feminista. Ambos os filmes serão exibidos juntos, e como forma de tratar dos temas abordados, no dia 25/02 haverá um debate com a pesquisadora de cinema, estética e política e Profª da ESPM, Gabriela Almeida. 

 

O representante brasileiro, por sua vez, também trata de uma dupla de amigas que resolveram se revoltar contra seus opressores. É o caso de Cuidado, Madame onde o cineasta ícone do cinema marginal, Júlio Bressane, coloca Maria Gladys e Helena Ignez para interpretarem ora madames, ora empregadas, expondo a desigualdade de uma relação de trabalho já marcada no Brasil: a do trabalho doméstico. Ao passarem por situações absurdas, típicas dessa forma de trabalho, as duas personagens passam a peregrinar pela cidade matando todas as patroas, numa forma de vingança contra a burguesia e as classes mais abastadas, que sinaliza uma espécie de insurreição contra os patrões.

 

Boas sessões!