PARA GOSTAR DE CINEMA

O que faz alguém gostar de cinema? Na hora de reconstruir onde começa a cinefilia, não raro, apelamos para a nostalgia. Difícil esquecer qual foi o primeiro filme que vimos numa sala de cinema, em grande parte dos casos, uma animação. Na adolescência, o cinema também protagoniza boas lembranças, às vezes, o primeiro beijo, o primeiro encontro, mas também a primeira vez que fomos, sozinhos, assistir a um filme que ninguém mais queria ver. Mais que onde e com quem estávamos, lembramos de para onde fomos e para onde frequentemente voltamos, os filmes que, ao longo dos anos, mantiveram vivo o nosso interesse pelo cinema. Na nossa tradicional mostra Para Gostar de Cinema, vinte e seis filmes - vários em cópias 4K - de onze países diferentes, feitos no decorrer de nove décadas, se incumbem da deliciosa tarefa de convidar o nosso público a incluir o cinema, também, na sua vida universitária.
O decano da lista, Metrópolis, é, possivelmente, um dos filmes mais influentes já feitos. Apesar do seu lugar solitário como o único representante do cinema silencioso, rastros de sua influência são visíveis em vários filmes da mostra, como Akira, principalmente na caracterização da cidade de Neo Tóquio. O caçula da nossa programação, Shin Godzilla, é o resultado da influência não só de Akira, mas das animações no cinema live-action. Dirigido por Hideaki Anno, criador da icônica série Neon Genesis Evangelion, esse filme da franquia Godzilla tem a linguagem de um anime, valendo-se de enquadramentos angulados e atuações exageradas.
Do nosso lado do Pacífico dois gêneros polarizantes marcam presença na nossa programação: o musical, e o western, Um Americano em Paris, unanimidade entre amantes e inimigos dos musicais, e Rio Bravo. Na contemporaneidade, até mais datados e impopulares que os musicais, grande parte das histórias de cowboys não é muito bem lembrada ou quista pelo público mais jovem. Felizmente, esse não é o caso de Rio Bravo, o western perfeito até para quem não gosta de westerns. Se não o melhor, o mais gentil representante do gênero, o filme desafia a masculinidade dos seus protagonistas enquanto tipos brutos e insensíveis, construindo uma das mais belas odes à amizade no cinema. À sua maneira, Bom Trabalho também coloca em xeque os seus protagonistas. Sob o olhar de Claire Denis, o colonialismo hiper-masculino da Legião Francesa é pretexto para um estudo minucioso do caráter performático, homoerótico e obsoleto das forças armadas.
Na mostra, outras duas diretoras, duas Saras, problematizam também o lugar do colonialismo e militarismo no cinema. Em De Certa Maneira, Sara Gómez, a primeira - e uma das únicas - cineasta negra do ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos), parte de uma docuficção para questionar, depois de quinze anos, quais são os resultados da revolução cubana. Num conflito dialético de pontos de vista, ela contempla os caráteres raciais e de gênero que precisam ser levados em conta para uma verdadeira mudança no tecido social do país. Já Sarah Maldoror, pioneira no cinema feito por mulheres no continente africano, em Sambizanga, conta a história de Maria, uma mulher à procura do seu marido, militante revolucionário, preso pela polícia portuguesa. Num ato de coragem, o filme foi gravado quando Angola ainda não era independente e, por isso, as gravações precisaram ser feitas na República do Congo.
De volta ao cinema de gênero, o terror encontra representantes dos dois lados do oceano Pacífico: um que não poderia ser mais clássico, Psicose, do mestre Alfred Hitchcock, e outro que não poderia ser mais atual, Pulse. Dirigido por Kiyoshi Kurosawa, o filme conta a história de uma maldição que se alastra pela internet. As vítimas do fantasma se isolam e se matam. Pulse sinaliza a relação perturbada que o cinema sempre teve com a internet. Assim como ocorreu com a televisão, a internet surge como uma nova tecnologia que roubou olhares antes do cinema para si.
O carro, em contrapartida, é uma invenção contemporânea à sétima arte. Os dois marcam o início do século XX e simbolizam o capitalismo e a vida urbana. A familiaridade do automóvel e do cinema, porém, não gera filmes menos inquietantes, como é evidente em Crash. Uma relação muito mais convencional entre automóvel-homem, pode ser vista em The Brown Bunny, um filme provocador na sua representação da relação mulher-homem. À parte da cena de sexo explícito que o tornou notoriamente polêmico, o longa é um road-movie. Nele, um homem, dentro de uma van, transportando sua moto de uma cidade para outra, tenta voltar para um lugar que ele mesmo destruiu.
Happy Together, dirigido pelo comemorado cineasta chinês Wong Kar-Wai, também narra um amor autodestrutivo. Nele, um casal viaja à Argentina em busca de um novo começo, mas esse acaba por ser o começo do fim dos dois. Embalado por tristes imagens de Foz do Iguaçu e Buenos Aires, o filme constrói-se menos enquanto uma narrativa tradicional e mais como um poema visual. Do outro lado do cinema de Hong Kong, está A Touch of Zen, filme que, apesar de valer-se também de imagens líricas, pouco tem a ver com o estilo de Kar-Wai. O diretor, King Hu, é considerado o grande mestre dos Wuxias e, este filme, amplamente reconhecido como um dos principais responsáveis pela popularização do gênero - associado a histórias de fantasia e artes marciais - no ocidente.
A Canção da Estrada, de maneira similar, também foi a porta de entrada de muitos para o cinema indiano. O filme, muito distante do que o senso comum relaciona à cinematografia do país - musicais de Bollywood - está num registro muito mais naturalista. O filme traz a comovente história de Apu e sua irmã Durga. Primeira parte da trilogia que ficou conhecida como “Trilogia de Apu”, o filme é um marco do cinema indiano mas também mundial.
Cabra Marcado Para Morrer e Ilha dos Prazeres Proibidos, por outro lado, apresentam ao público facetas bem distintas da produção cinematográfica brasileira. Apesar de ambos abordarem a ditadura militar e suas mazelas, os filmes o fazem de maneiras muito diversas. Coutinho se vale do documentário enquanto formato para percorrer 20 anos de história brasileira, investigando os traumas e as perdas ocasionados pela ditadura. Já Carlos Reichenbach, utiliza do humor e do erotismo para abordar a perseguição política durante o regime. Revolucionários em seus próprios campos, ambos atestam a diversidade do nosso cinema.
Completando nossa programação, a mostra contará ainda com um evento especial, um noitão que exibirá os três filmes da “Trilogia Before”, de Richard Linklater, longas que serviram como um dos pontos de partida para a cinefilia de muitos de nós e, acreditamos, boa parte do nosso público. Convidamos a todos para conhecer pela primeira vez ou se encantar de novo com essas histórias, dessa vez na nossa telona. Ainda, em uma sessão única, será exibido Aftersun, filme que, recentemente, também angariou novos amantes do cinema.
François Truffaut uma vez disse: “Quando não gostamos da vida, vamos ao cinema”. Com a Para Gostar deste ano desejamos que nosso público goste, conheça e reencontre o cinema em seus gêneros, provocações políticas e estéticas: enquanto não só fuga, mas comemoração da vida.
Boas sessões!