EM CARTAZ

A LINHA DE FRONTEIRA SE ROMPEU


Há um indelével conjunto de características que formam o povo de uma nação, uma identidade inescapável e muito particular que nos molda tal qual somos. Portanto, deslocar-se desse microcosmo único é deslocar-se um pouco do que nos faz o que somos. O cinema investigou profundamente esse deslocamento e suas motivações. 

Entre 28 de abril e 18 de maio, o CINUSP apresenta a mostra A Linha de Fronteira se Rompeu, contando com obras que analisam o que acontece quando alguém rompe a barreira imaginária entre uma nação e outra e o que leva uma pessoa a viajar de seu país de origem para uma terra estrangeira. 

Muitas vezes o interesse dos cineastas é atrelar uma viagem interna de seus personagens a um deslocamento físico. É o caso, por exemplo, de Viagem à Itália. Este grande clássico dirigido por Roberto Rossellini narra a ida de um casal inglês para Nápoles. Com o casamento em crise, a viagem deixa evidente a distância entre eles. A obra tem algo de autobiográfico já que o diretor e a estrela Ingrid Bergman enfrentavam uma crise em seu casamento. Cópia Fiel também coloca um casal na Itália como foco. Com Abbas Kiarostami dirigindo fora de seu país pela primeira vez, o filme posiciona um autor inglês e uma francesa dona de antiquário perambulando pela Toscana e conversando sobre o valor das cópias de obras de artes. O filme é repleto de brincadeiras com a mise-en-scene e jogos entre os atores mas, além disso, é muito interessante observar como Kiarostami consegue levar sua linguagem para um território totalmente novo tanto geograficamente quanto na forma fílmica. 

Chantal Akerman também brinca com as possibilidades audiovisuais em Notícias de Casa. Vivendo nos Estados Unidos e com sua mãe morando na Bélgica, a diretora faz um ensaio sobrepondo cartas trocadas e imagens gravadas de uma Nova Iorque setentista. O deslocamento de Chantal é claro e a apresentação de uma faceta do lado menos glamouroso dessa megacidade é bastante interessante. Migrar para os EUA é migrar para o coração do capitalismo no mundo, esse fato por si só gera situações inquietantes. Relações de Classe de Straub e Huillet adapta a obra “O Desaparecido ou Amerika” de Kafka, narrando a história de um jovem alemão lançado num mar de infortúnios ao chegar nos Estados Unidos. Buscando o sonho americano quase que por acidente, o rapaz se torna um peão de acasos bizarros enquanto busca emprego. 

O trabalho é muitas vezes um forte motivo para migração. Em países subdesenvolvidos, o senso de pertencimento nacionalista pode ser abandonado em troca de melhores condições de vida. Noites Paraguayas mostra um recorte dessa realidade ao apresentar um grupo de paraguaios que viajam para São Paulo buscando trabalho. O filme dirigido por Aloysio Raulino brilha ao não focar especificamente em um de seus personagens, entregando ao público um leque curioso de jornadas possíveis para esses homens que chegam a uma dantesca e imensa São Paulo oitentista. A Negra de… dirigido por Ousmane Sembène também apresenta uma personagem deslocando-se em busca de melhores condições de vida, porém, ao contrário de Raulino, Sembène foca todas as suas atenções em uma única personagem: Diouana, uma mulher senegalesa que se muda para a França para trabalhar como doméstica. Aqui, a marca colonial e o racismo são componentes fortes demais para que a jornada se dissipe em outros caminhos. 

O cinema africano tem como característica pungente a análise do colonialismo em suas entranhas. Med Hondo faz isso no clássico Ó, Sol ao analisar a vida de um jovem mauritano que também viaja para a França. Apesar de ter uma trama em mãos, Hondo concentra-se muito mais na força de seu discurso revolucionário e crítico do que em um caminho narrativo muito claro. No francês India Song a diretora Marguerite Duras também analisa o colonialismo, mas lançando seu olhar sobre o colonizador e não sobre o colonizado. Ao observar o angustiado cotidiano da esposa de um diplomata francês na Índia, Duras apresenta vidas esvaziadas de sentido, presas entre as paredes de uma mansão enquanto fora dos portões a lepra e a fome assolam o povo. Nada é dito em tela, tudo são memórias e burburinhos de uma aristocracia decadente e entediada em terra estrangeira. 

O choque de culturas em uma situação de migração é um componente profundamente interessante de ser dramatizado, com alguns exemplares interessantes tendo sido realizados pelo cinema. Ninotchka é um desses exemplares interessantes. A comédia romântica dirigida pelo icônico cineasta Ernst Lubitsch narra a ida de Nina, uma emissária soviética, para Paris em missão especial. É claro que o filme utiliza de um humor ácido para tratar do choque entre socialismo e liberalismo, principalmente quando Nina se apaixona por um galanteador francês cheio de posses e luxos. Já em O Abraço da Serpente o choque se dá entre o xamã Karamakate e europeus brancos que querem sua ajuda para conseguir uma flor rara das profundezas da Amazônia colombiana. O conceito de posse e o uso da floresta nunca parecem se encaixar direito na relação entre nativo e invasor, gerando diversos conflitos nesta obra hipnótica.

A selva também é o território selecionado por Francis Ford Coppola para abrigar seu épico de guerra Apocalypse Now. Com uma crítica à desastrosa incursão estadunidense no Vietnã, o filme de Coppola se tornou uma lenda do cinema pelo escopo gigantesco e pela sua jornada de produção completamente insana. Com a floresta e a guerra destruindo a mente dos homens, a obra apresenta um retrato visceral do neocolonialismo estadunidense. O elo entre belicismo e migrações é tema do filme de Coppola e também de Filhos da Esperança dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón. Este imagina um cenário distópico futurista onde a humanidade entrou em colapso após se tornar infértil, gerando um êxodo para a Inglaterra, o último país que ainda conta com algo parecido com uma sociedade. Através de uma fotografia hipnotizante, Cuarón utiliza de uma realidade ficcional para trazer imagens que parecem assustadoramente familiares para nós por remeterem a passados não tão distantes da humanidade. Já Sem Chão parte para algo muito mais delicado do que elucubrações de um futuro distópico. O documentário vencedor do Oscar em 2025 mostra a expulsão em massa de uma comunidade palestina pelos invasores israelenses. As imagens chocam ao apresentar a realidade vivida pelo povo palestino em meio ao genocidio cometido por Israel que se mantém até hoje. Uma obra impressionante que serve como mais um dos lembretes das injustiças que ocorrem em Gaza há décadas. 

O ato de deslocar-se entre nações é e será sempre tema para debates, o que isso pode gerar nesses diversos personagens? Rompa a porta que separa a sala do CINUSP do resto do mundo e descubra. 

 

Boas sessões!