VÍDEO: VIGILÂNCIA E INTIMIDADE

Os primeiros protótipos datam o final do século XIX, mas a tecnologia que se convencionou chamar de vídeo só passou a ser amplamente utilizada na década de 1950, primeiramente na televisão ao vivo, depois, na gravação de programas de auditório em videotape. Pouco tempo depois, o vídeo encontrou usos comerciais de grande aderência que extrapolaram seu propósito primário: o vídeo caseiro e a câmera de segurança. O vídeo caracteriza-se por, diferente da fotografia fotoquímica, registrar imagens a partir de sinais eletrônicos - podendo ser tanto sinais analógicos (ex: VHS), quanto digitais (ex: mp4).
Confrontado pela frontalidade da televisão, a intimidade da domesticidade e a invasão da segurança, o suporte, quando utilizado no cinema, reiteradamente evoca esses imaginários. Entre os dias 19 de maio e 08 de junho, o CINUSP apresenta a mostra Vídeo: Vigilância e Intimidade, que, partindo de uma seleção de longas e curtas-metragens, busca ilustrar como o vídeo, quando utilizado no cinema, articula essas duas noções.
Pioneiros do meio, na metade dos anos 1970, Jean Luc-Godard se junta a Anne Marie Miéville para realizar seus primeiros trabalhos em vídeo. Em Número Dois (1975), a película registra dois monitores que, por sua vez, exibem imagens capturadas em vídeo. Neles, cinema e televisão, pais e filhos, homem e mulher, casa e trabalho, vigilância e intimidade são sobrepostos de forma a sintetizar novos sentidos. Valendo-se de uma câmera por vezes imóvel, as imagens domésticas de Godard e Miéville espelham o olhar vigilante e voyeurístico de um espião.
A vigilância na vida privada é um tema constante na obra de Abel Ferrara. Desde a década de 1990, o diretor mescla suportes e utiliza o vídeo como um significante da invasão. Neles, porém, são poucas as imagens de câmeras de segurança. Sempre muito furtiva, a câmera está não raro em cena, empunhada por um dos personagens que registra e vigia seus pares. Em Zeros e Uns (2021), o protagonista não só filma, como é filmado. Ambientado durante um dos lockdowns da pandemia da Covid-19, a intriga do filme está em consonância com a realidade daquele momento desesperado: o mundo adoecia, a vida continuava através de webcams e telas. Conforme denunciado por vários militantes pela privacidade digital, a pandemia acelerou o processo já bastante dramático de vigilância na internet.
We’re All Going To the World's Fair (2021) também trabalha com o imaginário das forças invisíveis que regem o mundo online, partindo, porém, da ótica do exibicionismo e da intimidade muito mais do que da vigilância e da invasão. Nele, acompanhamos Casey, uma adolescente cuja vida se reduz ao seu computador. Evocando o universo das creepypastas e das salas de chat na internet, o filme opera quase como um found footage, em que vemos as videochamadas e os vlogs feitos pela protagonista. Talvez o mais conhecido representante deste subgênero, A Bruxa de Blair (1999), popularizou e motivou uma série de filmes de terror que, no início dos anos 2000, tentaram repetir o seu sucesso e dispositivo: um vídeo caseiro testemunha um encontro com o sobrenatural.
O olhar que o cinema found footage ficcional simula é praticado de fato no cinema documental. “Nada de atores; nada de imagens realizadas por mim; melhor citar coisas que já existem e criar uma nova qualidade documental”, disse Harun Farocki. Em Videogramas de uma Revolução (1992), o diretor remonta os eventos que levaram à queda do regime socialista da Romênia em 1989 a partir de vídeos caseiros realizados pela população civil. As imagens do filme chocam pelo absurdo registrado, mas também pela diversidade de pontos de vista. Num dado momento, vemos – quase como num plano e contraplano – registros da população civil se abrigando de tiros que são disparados a esmo seguidos de uma gravação feita dentro do apartamento onde o atirador estava. Ainda, em O Homem Urso (2005), Werner Herzog constrói um filme a partir de imagens que não foram produzidas por ele. Aqui, o protagonista é também o cinegrafista do documentário: Timothy Treadwell, um excêntrico apaixonado por ursos pardos e morto por eles. Para além de narrar sua trajetória, ao montar e comentar o material videográfico deixado por Treadwell, Herzog chama atenção para a sensibilidade dos registros dele. Aproximando-se tanto do olhar cândido das primeiras vistas de Lumière, quanto do espírito confrontador que o próprio Herzog nutriu ao gravar na natureza, Treadwell mais que um aventureiro, um louco, é uma testemunha ocular de um fazer cinematográfico e uma natureza em vias de extinção.
Não são poucos os exemplos de cineastas que – assim como Herzog – têm a maior parte da sua filmografia gravada em película e, em meados dos anos 2000 desenvolveram interesse pelo vídeo, em especial no formato Mini-DV. Em Dez (2002), Abbas Kiarostami, um diretor cujo estilo é recorrentemente ligado a planos abertos e belas paisagens, abrevia o espaço cênico para o interior de um carro. Nele, uma câmera que aparenta estar escondida registra dez conversas íntimas que a motorista tem com pessoas que são conduzidas por ela. O último filme de David Lynch, Império dos Sonhos (2006), é o primeiro que ele gravou inteiramente em vídeo. O formato interessou o diretor, num primeiro momento, pela maior facilidade de manipulação da imagem na pós-produção. Incrustações, chroma-key e justaposições são amplamente utilizados na videoarte desde a década de 1960 e já foram elementos de distinção entre vídeo e película. O filme, apesar de próximo do restante da sua filmografia, radicaliza a verve experimental do diretor.
De maneira similar, Os Catadores e Eu (2000) expande o cunho ensaístico do cinema de Agnès Varda. No filme, uma câmera moderna (à época) torna-se testemunha do envelhecimento de Varda, que filma sua pele enrugada e seu cabelo cada vez mais branco. O vídeo comporta as imagens que já não cabem no cinema. Sua proximidade com a televisão, os registros amadores e a segurança o tornam um terreno fértil para imagens incômodas, como aquelas relacionadas à morte. Em Silverlake Life: The View From Here (1993), Tom Joslin registra o processo de adoecimento dele e de seu parceiro Mark, ambos acometidos pela AIDS. Endereçando diretamente à câmera, o vídeo-diário constrói-se a partir de imagens dolorosas da decadência do corpo e de imagens ternas de momentos compartilhados pelos dois namorados. Em contrapartida, Bill Viola, um dos maiores nomes da videoarte, ao representar a morte da sua mãe, vale-se menos de um registro direto e mais de um lírico. Em The Passing (1993), o diretor mistura gravações de sua mãe acamada com vídeos caseiros e imagens de desertos à noite, de maneira a criar um testemunho poético não só da passagem entre a vida e a morte, mas também do luto que vivia.
Love & Pop (1998), ao retratar a incursão de um grupo de garotas numa prática que está no limiar da prostituição e da pedofilia, explora a portabilidade das câmera digitais ao extremo. Nem toda intimidade é desejada, mas é sempre difícil esconder-se da câmera de vídeo. Hideaki Anno enquadra o filme de lugares e ângulos que pareciam impossíveis tanto física, quanto moralmente. Debaixo da saia de uma colegial, dentro de um provador, estamos sempre mais perto do que gostaríamos das personagens. Igualmente próximo, no filme No Quarto da Vanda (2000), a abordagem de Pedro Costa ao representar a dura realidade do bairro de Fontainhas é, porém, diametralmente oposta à de Anno. Ao invés de explorar a mobilidade da câmera Mini-DV, o diretor filma com impassibilidade, valendo-se de planos estreitos e longos. Numa crítica emblemática do filme, João Bénard da Costa anuncia que o século XX foi aberto pelas imagens do quarto da Vanda e, de lá, não se sai mais.
Apesar de ter iniciado a sua carreira filmando em película, o estilo de Hong Sang-soo hoje está diretamente atrelado ao uso que faz da fotografia digital. Gravando com equipamentos simples e portáteis, é capaz de reduzir sua equipe a não raro uma pessoa: o próprio. Em A Romancista e o Seu Filme (2022), sem pressa, personagens conversam sobre o fazer artístico enquanto uma câmera pacientemente os observa. A protagonista, uma escritora, deseja fazer um filme que, em vários aspectos, se aproxima do cinema de Hong. O formato videográfico também caiu como uma luva no estilo de Eduardo Coutinho. Barateando a produção, ele poderia não se preocupar com “gastar filme” com silêncios e conversas que “não levam a lugar nenhum”. Como colocado por Consuelo Lins, ele “precisava definitivamente do vídeo para fazer um filme centrado na fala dos personagens”. Babilônia 2000 (2001) se passa no último dia de 1999. No formato de entrevistas usual ao diretor, o filme se diferencia por ser montado cronologicamente, o horário em que cada uma das conversas aconteceu é anunciado em tela. Num outro exemplo brasileiro, o projeto Vídeo nas Aldeias buscou promover o vídeo como uma forma de produção, preservação e difusão audiovisual autônoma das culturas dos povos indígenas. Em O Espírito da TV (1990), Já Me Transformei em Imagem (2008) e A Arca dos Zo’é (1993), Marangmotxíngmo Mïrang - Das Crianças Ikpeng Para o Mundo (2001), torna-se evidente que o vídeo é uma forma não só de registrar, mas também de ver.
Da televisão, aos vídeos de aniversário e de casamento, às sex tapes e às imagens de câmera de segurança, o vídeo chega atrasado no cinema, já carregado de significados. O recorte que propomos aqui é um dos vários possíveis. Para além de ilustrar como a vigilância e a intimidade foram trabalhadas pelo meio, gostaríamos de contar a história de como o cinema viu – e vê – o vídeo. Dos pioneiros, aos entusiastas ocasionais, àqueles que recorrem ao vídeo na falta de recursos, convidamos todos a olhar o vídeo como novos – ou velhos – olhos.
Boas sessões!