IDADE ENCANTADA
IDADE ENCANTADA
Quando estamos crescendo, tudo parece mágico. A cada dia o mundo se torna maior, aprendemos sobre a cidade em que vivemos, as pessoas que a habitam. Entendemos que pertencemos a algum lugar, além de nossa casa. As menores coisas podem ser as mais importantes. As histórias de “coming of age”, em termo do inglês, buscam trabalhar justamente nesse registro – personagens jovens, crianças ou adolescentes, que passam por rituais de passagem, se descobrindo mais maduros, inteligentes ou responsáveis do que imaginavam. Essas histórias cativam o público há gerações, tanto na literatura quanto no cinema, com narrativas focadas na inocência e nos desafios da infância, nos problemas e privilégios dessa fase, permeando a produção cinematográfica em muitas formas.
Sendo um olhar tão abrangente, diversos cineastas buscaram compreender maneiras tematicamente únicas de abordar essas histórias, deixando de lado a materialidade do real e abraçando o maravilhoso e o sobrenatural. Na mostra Idade Encantada, o CINUSP exibirá uma série de filmes pensados sob um viés justamente mágico – são jovens que desenvolvem ou descobrem espécies de superpoder, ou que têm sua infância cruzada por uma atmosfera de encantamento, e lidam com o novo contexto extraordinário de seu crescimento. Contando com obras de diversos gêneros, décadas e países de produção, a perspectiva de traçar um paralelo entre as mudanças vividas por crianças e adolescentes com algo como controlar o tempo ou levantar objetos com a força da mente é o que os une nessa seleção.
Os temas da infância são comuns por todo o mundo, se aproximando do universal mesmo com suas unicidades culturais e geográficas. A experiência escolar, por exemplo, é um dos assuntos que une grande parte das crianças e adolescentes de todo o planeta, e a maioria delas deve concordar que ela não é um mar de rosas. Com certeza é o caso para a Jennifer em Phenomena, horror giallo de Dario Argento, uma americana que chega para estudar na Suíça quando uma série de assassinatos começa a acontecer na pequena cidade de seu internato. A sorte é que ela controla insetos com sua mente, e se junta a um professor para descobrir quem é o assassino, neste thriller que subverte os mistérios e investigações relacionados ao gênero com elementos fantásticos. Outra aluna nova é a protagonista de August in the Water, mítico filme de Gakuryu Ishii, realizador japonês conhecido por seus filmes punk que virou a chave de sua produção ao dirigir essa história atmosférica e etérea. Nesta, a personagem é uma atleta de saltos ornamentais que se vê em meio a uma crise climática quando uma seca começa a adoecer a população e acabar com a água nos canos. Algumas consultas astrológicas e acontecimentos inexplicáveis depois, ela entende que a resposta para esses problemas pode estar em suas mãos. A adolescência é mágica, mas tudo tem um custo.
Nobuhiko Obayashi, outro iconoclasta diretor japonês, também dedicou uma parte de sua carreira para histórias em que garotas têm que navegar pelos desafios da escola e de suas vidas pessoais enquanto lidam com a descoberta de poderes mágicos. Em A Garota que Conquistou o Tempo, a protagonista ganha a habilidade de viajar no tempo e no espaço, e tem de repensar sua relação com colegas da escola e com os contextos de sua cidade, em um filme que lindamente pauta todas essas questões juvenis, contando com efeitos especiais no chroma key e sequências eletrizantes em que a própria imagem parece se dilatar e então se abreviar conforme a garota utiliza seus poderes. Um clássico estadunidense que trata de dilemas parecidos é o Matilda de Danny DeVito, com sua protagonista incompreendida pela família e que encontra na telecinese uma maneira de defender suas vontades, seus amigos e sua querida professora. A memória afetiva desse filme se distribui entre as elaboradas cenas de confusão e trapalhadas na escola, marcadas por suas trucagens curiosas e inventivas, e as doces sequências de Matilda com sua professora, que parece realmente valorizar quem ela é, em meio a tudo que ela passa em casa.
Todos sabemos como os desafios nessa idade podem parecer maiores que tudo: nem sempre entendemos o contexto das dificuldades que permeiam nossa vida. Em O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro, a Guerra Civil Espanhola é o pano de fundo para os problemas de Ofelia, que é obrigada a morar com seu padrasto, um capitão do exército. A garota vê o sofrimento e a tensão ao seu redor, e se encontra em um conto de fadas sinistro ao encontrar a figura do Fauno, uma criatura mágica que a atribui diversas tarefas com a promessa de reunir Ofelia com seu verdadeiro pai. Com direção de arte luxuosa e cheia de detalhes, o filme se tornou referência pelo design de seus monstros e fadas. A protagonista de Pequena Mamãe, filme mais recente da diretora Céline Sciamma, também está passando por algo que não compreende completamente: o luto. Nelly viaja com a mãe até o interior da França após a morte de sua amada avó, para visitar a casa onde a mãe cresceu. Lá, brincando no bosque nos arredores da casa, faz uma nova amizade com uma menina misteriosa, e Sciamma dirige as jovens atrizes com delicadeza numa discreta mas fantástica aventura. O filme de estreia do celebrado Joseph Losey também trabalha com as ideias de perda e superação: O Menino dos Cabelos Verdes trata de Peter, um garoto órfão que, ao descobrir que perdeu seus pais na guerra e por isso tem de passar de família em família, acorda no dia seguinte com os cabelos verdes, sem mais explicação. A magia desse fenômeno encanta e assusta nesse vibrante filme infantil, dirigido por um mestre como Losey – o diretor alegoriza os terrores da guerra enquanto trabalha a encenação com precisão, de maneira a influenciar toda uma safra de diretores depois dele.
Em muitos desses filmes, a magia está sóbria, escondida nas entrelinhas da chegada à adolescência e do sentimento de não se encaixar com os outros. Em Sereia, da russa Anna Melikyan, a personagem mora num vilarejo do interior, e deseja tanto que sua vida mude, que isso acaba acontecendo – mas nunca do jeito que ela espera, em uma série de coincidências curiosas. Quando a menina cresce e vai para a cidade grande, suas habilidades a acompanham em um período incrivelmente melancólico e frustrante para essa versão da Ariel perdida em Moscou, apresentado com visuais marcantes e inusitados que ecoam filmes como “Medianeras” e “Amélie Poulain”. Quando Éramos Bruxas é outro filme em que a descoberta adolescente está preenchida com o desejo de se sentir em casa, em algum lugar. Estrelado por uma Björk de vinte e um anos, o longa de Nietzchka Keene conta a história de duas bruxas em busca de uma vida mais fácil do que a que tinham na vila que queimou sua mãe. Os dons mágicos dessas personagens servem de metáfora aos aprendizados das primeiras fases da vida, e a cinematografia em preto e branco reduz a magia em cena a seus elementos mais líricos e essenciais. Crescer é difícil – quando se é diferente, mais ainda.
Uma vertente dessas histórias que se passam longe das cidades grandes é a da mitologia oral, do folclore e das lendas de heróis e criaturas com poderes assustadores ou encantadores. As animações que compõem a mostra tratam de narrativas que pensam esse tipo de estrutura dentro do “coming of age”: Kiriku e a Feiticeira, pérola de Michel Ocelot, conta a história do pequeno Kiriku, que nasceu já sabendo falar e andar num pequeno povoado no Oeste da África e, com sua astúcia e inteligência, serve como o único da vila que pode impedir as maquinações da cruel feiticeira Karaba. Já A Canção do Mar, de Tomm Moore, trata do folclore irlândes ao contar a história da pequena Saoirse, uma menina que tem a habilidade mágica de se transformar em uma foca, e junto de seu irmão entra em uma aventura para salvar outras criaturas mitológicas. Pinóquio, adaptação da fábula italiana que conta do boneco de madeira que queria se tornar um menino de verdade, é meticulosamente desenhado para trazer à vida a história de um personagem que já marcou a infância de muitas gerações. O filme foi apenas o segundo longa-metragem da Disney, e sua iconicidade vem também do apelo universal de sua narrativa encantadora. Por fim, outra adaptação que anima uma história antiga da cultura popular é O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata para o Estúdio Ghibli. Com uma técnica impressionante e em um dos filmes mais formidáveis da animação japonesa, a história da princesa que nasceu de um talo de bambu é adaptada de uma fábula do Século X, vista por pesquisadores como a mais antiga história da região. No cerne dessas animações há verdades sobre como as histórias tradicionais de diferentes culturas vêem a infância como um superpoder, e sua inocência como mágica.
O Menino e o Vento, de Carlos Hugo Christensen, é um longa que também explora a ideia do folclore, da ideia de personagens lendários cuja memória se mistura entre verdade e ficção. Lançado em 1967, o filme é considerado por muitos como o primeiro longa-metragem LGBT do cinema brasileiro. Nele, o jovem Zeca da Curva consegue conversar, entender e manipular o vento de sua pequena cidade no interior. Após um íntimo encontro com um engenheiro carioca, o menino desaparece, e a lembrança de suas habilidades começa a se tornar tão misteriosa quanto seu sumiço. A exibição do filme será a de uma cópia em 35mm cedida pela Cinemateca Brasileira com apoio do Acervo Heco Produções, garantindo uma experiência única de assistir esse filme tão importante para o cinema queer brasileiro numa qualidade de imagem vastamente superior às outras disponíveis.
A Idade Encantada não é um número, e sim um estado de ser: as personagens desses filmes se encontram em estágios diferentes da vida, mas todas passam pelo caminho de olhar para si mesmas, para os outros ao seu redor, e então encontrar a magia em suas próprias vivências. Mais extraordinário que isso, só saber que você pode assistir todos esses filmes aqui no CINUSP. Esperamos que as aventuras dessas histórias ressoem com as suas próprias experiências, que permeiam a memória e se pintam de mágicas conforme se afastam no passado.
Boas sessões!