TRABALHAR É UMA PIADA


Desde seus primórdios, o cinema tem representado o trabalho. Crescendo em paralelo, antes mesmo de adquirir seu caráter de ofício, o cinema testemunhou revoluções industriais e o florescimento de novas relações de trabalho. Como prova disso, em um dos primeiros filmes já feitos, Louis Lumière filma o término do expediente e a saída dos trabalhadores de uma fábrica de películas — as mesmas utilizadas na filmagem.

Podendo ser abordado sob diferentes perspectivas, alguns cineastas escolhem representar o trabalho por meio da comédia, entendendo que a própria alienação do trabalhador, a postura de chefes abusivos, os colegas de escritório metidos e a presença de alguns clientes pra lá de inconvenientes podem se tornar muito cômicas. É com a intenção de humorizar os absurdos e o cotidiano do trabalho que o CINUSP exibe, entre os dias 9 e 29 de junho, a mostra Trabalhar é uma Piada, com uma seleção de 14 longas que transformam o chão de fábrica e o escritório em piada e set.

Começamos pelo paradigmático Tempos Modernos, em que Charles Chaplin interpreta, pela última vez, seu personagem Vagabundo. O longa critica veementemente, e com muitas trapalhadas, o modelo de trabalho nas fábricas adotado desde a Revolução Industrial, além do imperialismo e do sistema capitalista. Seguindo nas comédias que se passam em fábricas, exibiremos a animação de 2001 Monstros S.A., em que criaturas medonhas assumem os postos numa companhia de luz, cuja principal fonte de energia são os gritos de crianças assustadas pelos monstros em seus pesadelos. Working Class, de Tsui Hark, se passa numa fábrica de miojos que possui um péssimo relacionamento com seus funcionários. O diretor investe em sua conhecida decupagem eletrizante para construir uma comédia em que o vergonhoso é ser das classes mais altas, fazendo de suas piadas aparentemente bobas críticas ao sistema.

Ainda que, mais comumente, a crítica e a graça dos filmes se voltem, por razões óbvias, ao sistema capitalista, existem aqueles que recorrem ao humor para abordar a forma como outros sistemas se apropriam do trabalho. É o caso de A Vida de um Minerador Exemplar, docudrama de Bahrudin ‘Bato’ Čengić, diretor da Onda Negra do cinema iugoslavo. O longa tem por objetivo reconstituir, com atores profissionais e não profissionais, a vida do udárnik (um trabalhador braçal de alta produtividade) mais famoso do país, Alija Sirotanović. Tratando-se de uma crítica ao governo local, Bato o satiriza com um humor ácido que coloca os trabalhadores em situações inesperadas e constrangedoras. Já em A Morte de um Burocrata, o diretor cubano Tomás Gutiérrez Alea também ironiza a situação de Cuba pós-revolução, desta vez tratando do aspecto burocrático do país. O cineasta constrói um retrato bem-humorado de um homem cuja principal razão de viver era o trabalho e, ao morrer, pede para ser enterrado junto de sua carteira profissional. Em meio às burocracias, seu sobrinho passa por situações absurdas para tentar receber a pensão de sua tia. No dia 10 de junho, haverá debate após a sessão com a pesquisadora Mariana Villaça, que estuda o cinema cubano e a arte e política na América Latina.

Também centrado em um problema político - desta vez, a crise do Bloco Leste nos anos 1990 - está Nuvens Passageiras, do finlandês Aki Kaurismäki. O cineasta dedicou parte de sua carreira a filmes cujos protagonistas pertencem à classe trabalhadora, pois afirma considerar as conversas fúteis das classes mais altas, irrelevantes e desinteressantes. Construindo um melodrama à sua maneira e com sua típica identidade visual - filmagens sempre em 35 mm, tons frios e objetos que remetem a um passado recente -, Kaurismäki fala dos “perdedores” no sistema e constrói uma obra com toques de uma comédia fria, surreal e silenciosa em torno de acontecimentos cotidianos na vida de um casal que, de repente, se vê sem emprego. Para tentar garantir a sobrevivência, as personagens vivem situações cômicas que vão desde demissões injustas até humilhações na busca por emprego em uma agência especializada. Além do representante finlandês, há outro filme que satiriza o sistema de empregos: A Comédia do Trabalho, de Luc Moullet, cineasta da Nouvelle Vague conhecido por sua ousadia e ironia. Em seu longa, Moullet acredita que a própria ideia de trabalho como direcionador do sentido da vida humana é uma piada. Acompanhamos dois personagens distintos e guiados, cada um à sua maneira, pelo trabalho: Benoît se define como trabalhador, e Sylvain, pelo desejo de nunca trabalhar. Ambos se encontram em uma agência de empregos que, com funcionários escrachados, se mostra uma grande confusão. Aqui, é o próprio sistema de busca por emprego, com todas as suas burocracias, que é a grande piada. Confusão Confuciana, de Edward Yang, também se passa em uma agência, mas, desta vez, em uma de publicidade. Incompreendido em seu lançamento, por sua disparidade em relação aos trabalhos anteriores do diretor, o filme foi admirado alguns anos depois por seu refinado comentário político relacionado ao avanço do neoliberalismo em Taiwan. O longa trata da relação entre colegas de trabalho nesse escritório, e seu humor está principalmente nas intrigas e picuinhas entre os funcionários e na competição por uma vida mais bem-sucedida.

Como sabemos, existem alguns marcadores que podem determinar com o que uma pessoa trabalha e como ela será tratada no ambiente corporativo. Em Desculpe Te Incomodar, há um conflito que advém de uma forte questão racial. Cassius Green trabalha em um call center - ambiente de trabalho conhecido por ter altas demandas e várias pérolas do atendimento ao público - e precisa mudar sua “voz de negro” para uma “voz de branco”, caindo no gosto dos clientes e de seu chefe. Mas os mistérios e absurdos que esse ambiente carrega vão além disso. Em Jejum de Amor, comédia screwball dos anos 1940 dirigida por Howard Hawks, a protagonista Hildy Johnson é uma jornalista ferrenha, acostumada a trabalhar em jornais — à época, ambientes extremamente masculinos e sensacionalistas. Ao decidir largar essa vida “masculina” e dedicar-se a tarefas domésticas com um novo marido, acaba provocando o ex-marido, que faz de tudo para mantê-la em sua equipe de jornalistas. Já em Muito Prazer, de David Neves, observamos as diferenças entre dois distintos grupos que habitam a zona sul carioca: o primeiro, composto por um grupo de arquitetos de classe média alta; o segundo, por meninos que trabalham nos semáforos em frente ao escritório do primeiro grupo. A partir dessa dicotomia, o diretor trabalha o humor no cotidiano de trabalho dos dois grupos. A cópia será exibida em restauração 4K e, no dia 27 de junho, haverá debate após a sessão com o professor Carlos Augusto Machado Calil.

Existem ainda os filmes de comédia que têm como objetos ambientes de trabalho de onde já se espera que saiam coisas, no mínimo, curiosas. Em A Mulher do Supermercado, de Jūzō Itami, vemos a competitividade entre comércios levada ao extremo. Kobayashi é um dono de supermercado enlutado que passa a ter seu comércio ameaçado pelas ofertas alucinantes da rede vizinha. Um dia, encontra-se com Hanako (interpretada por Nobuko Miyamoto, esposa do diretor e frequentemente escalada em seus filmes), uma ex-colega de escola que conta ao amigo sobre a desonestidade do outro mercado e passa a ajudá-lo a reerguer seu comércio. Aqui, o que conta é o companheirismo entre amigos diante das investidas de redes desonestas que tentam monopolizar o setor. Clerks, de Kevin Smith, se passa em outro comércio - desta vez, numa loja de conveniência e locadora - onde o próprio diretor havia trabalhado anteriormente. Filmado com baixíssimo orçamento, que depois aumentou exponencialmente com os direitos autorais das músicas, o longa acompanha Dante, chamado por seu chefe em seu dia de folga para cobrir o turno de um colega. Lá, precisa lidar com clientes inconvenientes e bizarros, demandas de um chefe folgado, roubos e seus próprios problemas pessoais, além de jogar uma partida de hóquei com o amigo no telhado.

Quem também precisa lidar com as demandas do chefe é Andy, em O Diabo Veste Prada. Programado em uma sessão especial, o longa trata de forma cômica as relações de trabalho em um ambiente onde o poder é disputado a tapas. Na história, a jovem Andy é uma jornalista recém-formada que é contratada para trabalhar em uma grande revista de moda. Para ganhar o respeito da chefe exigente e das colegas fúteis, precisa abdicar de sua vida pessoal e de seu estilo.

É com essa coleção de expedientes absurdos que o CINUSP convida todos a conhecer as ironias das jornadas de trabalho, da Finlândia à zona sul carioca, dos escritórios aos supermercados.

Boas sessões!