EM CARTAZ

NADA ACONTECE


Quando pensamos em ver um filme no cinema, de início, já esperamos assistir a uma trama repleta de reviravoltas e fantasia. Se o filme não atende a essas expectativas e se volta a situações banais e cotidianas, é comum que se diga que nada aconteceu. Existem, porém, abordagens cinematográficas que se baseiam justamente nessa falta do grande acontecimento. De alguma forma, encontram luz, beleza e espaço para reflexão naquilo que, a todo custo, tentamos evitar.

Nestes exemplos, todo o ritmo esperado no cinema clássico é suspenso, e a atenção se volta aos pequenos gestos que se desenrolam em cena, como, por exemplo, o da personagem que, deitada na beira de um rio, vê o tempo passar; outra que minuciosamente prepara o jantar do filho. Os planos médios, a câmera fixa e as tramas com poucas elipses focam nas conversas banais, nos olhares e na relação das personagens com o ambiente. Nesses filmes, o tempo do cinema se funde ao tempo do espectador, causando proximidade ou estranheza.

É justamente partindo dessa percepção de tempo que, entre os dias 11 e 31 de agosto, o CINUSP apresenta a mostra "Nada Acontece".

Essa vertente estilística absortiva — onde vemos personagens absortas em momentos do cotidiano — teve um período de produção mais intensa entre os anos 90 e 2010. Entretanto, seus elementos rondavam o cinema há muito tempo, sendo um exemplo o neorrealismo italiano. Em Umberto D, somos apresentados a um idoso que vive junto de seu cachorrinho num pensionato e passa por um momento financeiro difícil. Apesar do forte estilo melodramático, para o crítico André Bazin, o cinema, na obra, tornava-se o contrário da “arte da elipse”, pois representava blocos de ações da rotina das personagens de forma contínua, cortando apenas quando estritamente necessário. 

Dez anos depois, ainda na Itália, está Eclipse, de Michelangelo Antonioni. No longa, acompanhamos um casal interpretado por Monica Vitti e Alain Delon. Como forma de tecer um comentário sobre a humanidade moderna, Antonioni nos apresenta, diante dos hiatos das construções modernistas de Roma, uma relação amorosa com contornos diluídos, onde há um grande vazio de sentimentos e dificuldade de expressão. Também tratando da comunicação está A Liberdade, de Lisandro Alonso. O longa surge de uma viagem do diretor ao Pampa argentino, onde conhece Misael Saavedra, que na obra reencena a própria vida: corta madeira, realiza vendas, cozinha suas refeições, provocando uma sensação de identificação a partir da gestualidade humana, algo que interessava a Alonso, uma vez que percebia em si próprio e no jovem uma grande dificuldade de comunicação através de palavras. Wang Bing também viaja em busca de suas personagens. Pai e Filhos mantém o objetivo do diretor de registrar a vida de pessoas simples para que ganhem significado na história. Acompanhamos o cotidiano de dois adolescentes, filhos de um minerador pobre. Os planos, praticamente imóveis, constroem uma relação paradoxal com o ritmo acelerado que não vemos, mas imaginamos operando nos arredores daquele humilde casebre, numa cidade operária, cujo ritmo das máquinas devora outras possibilidades de vida. 

Do desolamento e busca de sentido na juventude, também exibiremos Eu, Tu, Ele, Ela, de Chantal Akerman. No longa, após um término complicado, a protagonista sente-se presa ao apartamento onde está. Logo, a situação se torna insustentável e ela decide partir. O filme nega uma conclusão clara e desconstrói a noção de três atos, cujo último costuma trazer em si um desfecho claro. Na sessão, exibiremos também La Chambre, exercício estrutural de Akerman, no qual uma panorâmica em 360º a filma deitada em seu apartamento. No dia 28/08, às 16h, haverá um debate após a sessão com o professor, pesquisador e crítico de cinema Luiz Carlos de Oliveira Jr. Do Apartamento Dele, do cineasta experimental Jean-Claude Rousseau, também se passa dentro de um apartamento. O longa explora a figura do próprio diretor limitado dentro do espaço e entregue à leitura de um romance. Os planos são filmados com perfeccionismo: diante da possibilidade de utilizar equipamento digital para a gravação, o diretor pode alongá-la da forma que desejar, criar o tempo da forma que preferir.

Fazendo alusão às mulheres que partem, como no filme de Akerman, temos Temporada, de André Novais de Oliveira, e A Mulher que Fugiu, de Hong Sang-soo. O primeiro conta a história de Juliana. Recém-chegada a Contagem, deixa para trás seu companheiro que, com a mudança, não lhe dá mais notícias. Mexendo com os elementos típicos que tornaram a produtora Filmes de Plástico famosa, como a atenção às classes mais baixas e a construção de um microcosmo afetivo mineiro, o longa trata da adaptação à cidade nova, suas dores e suas delícias. Já no filme de Hong, temos mais uma vez a parceria entre o diretor e a atriz Kim Min-hee, que, na trama, interpreta Gam-hee, casada com um homem de negócios que, certo dia, precisa viajar. Com isso, a mulher aproveita para visitar algumas de suas amigas que, distantes dos homens, tentam encontrar novas formas de viver. Aqui, os gestos de cuidado são o que figura como principal: elas cuidam das plantas, dos animais, umas das outras, da casa que dividem, vão ao cinema sozinhas e descascam maçãs.

Em Pai e Filha, de Yasujiro Ozu, é um pai quem descasca uma maçã, melancólico após o casamento de sua filha, responsável por seus cuidados. No longa acompanhamos o dia a dia de um viúvo que vive com sua filha e logo se vê num conflito: como pai, deseja que a filha se case e vá viver sua vida. Já a filha prefere se dedicar integralmente aos cuidados do genitor. Quando o casamento é arranjado, a rotina de ambos se rompe. 

Outro filme que também aborda o cotidiano em ruptura, mas com um viés hiper-real e minimalista, é Jeanne Dielman, de Chantal Akerman. Clássico e pioneiro, o filme esmiúça o cotidiano de uma viúva e dona de casa. Nada em sua construção passa batido, nem mesmo o trabalho doméstico. Em momento algum a câmera ou a montagem se aceleram para deixar de mostrar o cotidiano desta mulher, que, lentamente, se despedaça. Andy Warhol também trabalhou com o hiper-realismo minimalista, mas, tomando seus objetos de filmagem como banais, já concebia seus filmes como propositalmente tediosos. Ao fazê-lo, desafia seu objeto e o trata de maneira hiperbólica, como, por exemplo, ao escolher encadear durante 40 minutos longos planos de beijos em Kiss, que será exibido junto com Blow Job, que mostra quase uma hora das reações de um homem recebendo sexo oral. No dia 14/08, às 19h, haverá debate após a sessão com a pesquisadora Fernanda Fachin. Ainda, exibiremos no hall Sleep, onde Warhol filma seu companheiro John Giorno dormindo.

Seguindo no underground estadunidense, exibiremos o segundo longa de James Benning, 11x14. Referência do cinema estrutural e conhecido por seus filmes de paisagens, Benning acrescenta aqui a figura humana agindo rotineiramente, e que logo se funde ao horizonte. A busca do diretor é por produzir um filme cuja personagem principal é sempre uma pessoa diferente em cada cena. Jim Jarmusch, outro cineasta norte-americano, produziu no início de sua carreira filmes cuja narrativa era mais lenta, como o road movie Estranhos no Paraíso. No longa acompanhamos um grupo de três amigos atravessando os Estados Unidos, e em seus planos contrastados e silenciosos, o que impera é o sentimento de ser jovem e não ter rumo no mundo. 

Wim Wenders também teve a fase inicial de sua carreira composta por filmes lentos, e em 2023 ele retorna com Dias Perfeitos, cujos enquadramentos homenageiam o cinema de Ozu. No filme conhecemos um senhor que trabalha como faxineiro de banheiros em Tóquio e vive uma rotina bastante estruturada, fazendo aquilo que lhe aquece o coração. 

Existem também filmes de cineastas cuja carreira consagra-se justamente por um estilo contemplativo e lento como Dias e Walker, de Tsai Ming-liang, que serão exibidos numa sessão conjunta. O primeiro nos apresenta o distinto cotidiano de dois homens, Kang e Non. Os dois se encontram na casa de massagem onde o segundo trabalha, saem e depois não se veem mais. Já no segundo acompanhamos um monge que caminha por Hong Kong. Movimentando-se vagarosamente, ele contrasta com o fundo convulsivo de Hong Kong, causando no espectador uma sensação de esgarçamento temporal. Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul, cineasta conhecido por seu estilo sereno e sensível, conta a história dos pais médicos do diretor e sua experiência crescendo num ambiente ora rural, ora urbano. Dividido em duas partes similares, o filme pede ao espectador que se volte aos pequenos gestos que podem diferenciá-los. Com diálogos sussurrados e ambientação leve, o diretor constrói um retrato delicado sobre as relações que sobrevivem a dicotomias, como a da medicina vs. magia.

É com essa proposta de desaceleramento que o CINUSP te convida a respirar e conhecer uma outra maneira de fruição cinematográfica, atenta ao gesto, ao detalhe e à serenidade que o cinema pode oferecer.

Boas sessões!