EM CARTAZ

AMORES FANTASMAS


Amar o perdido deixa confundidos os corações desde que o tempo é tempo. O final de uma relação afetiva, circulado de incontáveis vontades impossíveis, é não raro marcado por um sentimento inesgotável de vazio, onde antes ficava todo o afeto e carinho a uma pessoa que não está mais lá. A representação fantasmagórica dessa ausência é uma das maneiras que a arte encontra para ilustrar essa memória que não morre, esse amor que fica com a gente, que insiste. No cinema, essa figura é ainda mais essencial e presente, pelo caráter já espectral da imagem gerada, o filme em si uma ilusão de ótica e uma projeção de algo que não existe mais — resultando na fantasmagoria, por definição.

 

Esses fantasmas, então, podem ser encontrados por toda a história do cinema, em diferentes roupagens; certamente sua presença é marcada no gênero do terror, com um caráter mais óbvio da assombração pós-morte, mas quando olhamos para as narrativas românticas também é possível encontrar inúmeras histórias que envolvem espíritos em entrelaços com o mundo material, e com os afetos cultivados do lado de cá. Essas estruturas se constroem de maneira elegante e metafórica, de maneira que esse fantasma signifique mais que sua mera aparição. Tais espectros tremulam e surgem em tela na mostra Amores Fantasmas, em que o CINUSP apresenta um panorama dessas representações, em obras de diversos gêneros e propostas estéticas, borrando os limites entre o físico e o espiritual. 

 

Centralizando a proposta curatorial e apresentado em sessão única, Heaven is Still Far Away coloca em termos claros como essa relação pode ser tratada sob uma lente sensível. O média-metragem de Ryūsuke Hamaguchi propõe olhar para o fantasma como, simplesmente, a permanência de alguém na Terra: executado sem efeitos especiais, com uma produção enxuta e diálogos desafetados, é como se a personagem-fantasma do filme estivesse ali sem percalços, ocupando o espaço como os outros. A mediação das câmeras, tanto a do diretor quanto a diegética, traz essa figura para o plano real, com suas emoções e gestos tendo a mesma importância das dos vivos.

 

A ideia de que o fantasma pode ser o amor que segue em vida, se materializando por razões afetivas para a pessoa que continua aqui, tem também um fundamento em conceitos folclóricos e histórias tradicionais. É do Vietnã que vem o filme Quando Chega o Décimo Mês, de Đặng Nhật Minh, pérola dos anos 80 e representante pleno dessa fonte de inspiração. Duyên, viúva após seu marido morrer em combate, esconde isso de sua família ao pedir para que o professor da cidade continue escrevendo cartas em nome do falecido, mantendo-o vivo nos pensamentos de todos. Eventualmente essa presença fica tão forte que se materializa, em uma sequência de delicadeza rara, sobrevivente de diversas tentativas de censura prévia justamente por sua aproximação das crenças populares. Duvidha, filme indiano do importante cineasta Mani Kaul, também se inspira em uma narrativa oral. É notável o caráter folclórico no triângulo entre a jovem protagonista, seu marido distante e um fantasma, que assume a forma do esposo para conquistar a amada. O filme tem uma linguagem única, que dialoga com a história idílica ao contá-la de forma tão poética quanto os sentimentos que silenciosamente borbulham no interior de seus personagens.

 

Esses elementos fantásticos, associados a religiões e crenças mais espirituais, comumente levam a histórias cheias de símbolos e significados, com todo o passado de um povo ilustrado em pequenos detalhes. Mal dos Trópicos é, à primeira vista, um romance até meloso entre um soldado e um civil em uma pequena cidade tailandesa. A rotina dos dois é leve, pontuada por conversas sensíveis e destacando ações cotidianas. Com a abrupta mudança de chave ao meio do filme, tudo que veio antes adquire novos significados — inclusive os espíritos, antes mencionados e implicados, e agora habitantes de uma densa floresta. É o filme em que Apichatpong Weerasethakul mais aborda a homossexualidade, explorando a unicidade dessa representação dentro do contexto fantasioso em que o diretor costuma trabalhar. Para um debate após uma das sessões, convidamos o Doutorando e Mestre Renato Trevizano dos Santos, que pesquisa monstros, fantasmas e santos no cinema queer contemporâneo. Outro filme da seleção que entra no universo das religiões populares é A Morta-Viva, de Jacques Tourneur. A história de uma enfermeira que viaja ao Caribe para cuidar de uma paciente é tingida pelas crenças locais, com suas músicas e rituais guiando o estranho caminho da narrativa. Os elementos sobrenaturais se equivalem à inesperada paixão que acomete a protagonista, criando uma atmosfera soturna e misteriosa que envolve todo o filme como uma névoa, de maneira impressionante para um filme de estúdio dos anos 40.

 

Há os filmes em que os espíritos guiam e pautam a história de amor, mas há também os que colocam esse fantasma como objeto do desejo, próximo e distante, em paradoxo. Assim como a enfermeira de Tourneur, Isaac também é chamado de longe para um trabalho em O Estranho Caso de Angélica, quando se apaixona pela falecida que deve fotografar. Angélica parece abrir os olhos e sorrir quando vista pela lente da câmera do personagem, colocando questões metalinguísticas em cena quando pensamos na forma desta representação fantasmagórica. No filme de Manoel de Oliveira, a materialidade do plano físico é um obstáculo no amor de Isaac por Angélica, que só conseguem se encontrar em sonhos, em sequências imaginativas e visualmente ricas que rompem com a sobriedade do mundo dos vivos. Outro personagem que se apaixona pela imagem de alguém que já morreu é o de Denzel Washington em Déjà Vu, em um gênero totalmente inesperado para essa diegese — o da ação. Após um ataque terrorista que mata centenas, um agente da polícia é apresentado a uma tecnologia maravilhosa, que consegue observar quatro dias no passado. Conforme a investigação progride ele se apaixona por uma das pessoas de interesse no caso, em sequências graciosas entrecortadas por explosivas perseguições de carros, gravadas por Tony Scott como por mais ninguém.

 

O amor fantasma não é, em todos os casos, um amor tranquilo. Alguns filmes apresentam personagens que não desejam consumar essa relação imposta pela aparição, ou cujo amor em vida não era algo lá tão agradável. Em O Chicote e o Corpo, dirigido por Mario Bava e situado em um castelo gótico, o espírito de Kurt (interpretado por um improvável Christopher Lee) retorna para reconquistar sua amada Nevenka, em um filme cheio de sombras tão escuras que causam medo só pelo navegar da câmera. A relação que eles mantinham no passado era tóxica e violenta, envolvendo punições físicas e morais; Nevenka crê já ter colocado isso para trás, mas a reaparição de seu esposo cria uma espiral de paranoia e incerteza. É uma situação parecida com a da personagem de Sônia Braga em Dona Flor e Seus Dois Maridos, sucesso do cinema brasileiro que exibiremos em 35mm, oferecendo uma nova maneira de assistir essa espirituosa observação da sociedade brasileira, dirigida por Bruno Barreto e adaptada da obra de Jorge Amado. Quando Flor se casa novamente após a morte de Vadinho, todos ao seu redor comemoram que agora ela estará casada com um homem correto e trabalhador; mas quando seu primeiro marido volta a aparecer, a personagem é confrontada com seus próprios desejos contraditórios. O humor é usado tanto como válvula de escape das dificuldades da personagem, quanto como reação natural às antíteses que vive.

 

O luto, invariavelmente, é componente nos filmes em maior ou menor grau, e pode ser o contexto que leva às aparições fantasmagóricas. Em Solaris, três cientistas a bordo de uma estação espacial entram em uma crise emocional, o que faz com que um psicólogo seja chamado para tentar entender o problema. Ele mesmo, então, começa a ser acometido por visões da esposa, já falecida, se materializando em sua frente e reavivando fortes emoções. O pesar que é empurrado para o fundo da consciência, de repente, é puxado de volta para a superfície, em um filme de ficção científica no qual Tarkovsky, diretor e um dos roteiristas que adaptou o livro de Stanisław Lem, fez questão de imbuir com profundidade emocional e texturas que nem sempre se veem neste gênero. Esses aspectos são mais comuns no drama, como no La Chimera de Alice Rohrwacher, em que um jovem arqueólogo navega a vida fora da prisão com a memória de sua ex-namorada sempre presente, em devaneios e sonhos, pautando seus movimentos e relações. Há um exímio trabalho com a luz e as cores do filme, expressando a melancolia reservada de seu protagonista no interior da Itália dos anos 80; é aí que ele se reúne com uma trupe de ladrões de tesouros, em uma rotina que o faz se sentir mais próximo de sua amada ausente. O luto também é o elemento central de Odete, filme do provocativo diretor português João Pedro Rodrigues. O personagem de Rui vive desolado após a morte de seu namorado Pedro, e fica ainda mais perturbado quando Odete, vizinha do falecido, se torna obcecada pelo rapaz e diz estar grávida dele. Essa fixação por Pedro acaba unindo os dois, em um filme que não teme ir longe demais para mostrar o estado inconsolável que vive à espreita de uma tragédia ou de uma loucura.

 

Essa ausência, portanto, pode ser tamanha que causa o fantasma, o conjura nos desdobramentos da consciência e o faz assumir forma e tom. Anna, personagem de Nicole Kidman em Reencarnação, acreditava já ter superado a morte do marido, ocorrida há dez anos, quando aceita se casar com o atual namorado. A direção tensa de Jonathan Glazer enfatiza a fragilidade dessa segurança em assumir um novo compromisso, e a protagonista perde o controle das próprias emoções quando, na festa de noivado, uma criança bate à porta e diz ser seu ex-marido reencarnado. O filme propõe o dilema moral de Anna, que se vê entre a estabilidade com o novo pretendente e a insanidade de acreditar no retorno do amor de sua vida, tudo centralizado na performance genial de Kidman, em um de seus melhores papéis. Vitalina Varela, de Pedro Costa, também se sustenta com sucesso em sua protagonista feminina, atriz e personagem que dá nome ao filme. Vitalina já havia aparecido antes em outro filme do diretor, “Cavalo Dinheiro”, mas agora rouba a cena em um filme de ritmo fúnebre e imagens sombrias e ermas. A Lisboa em que a mulher chega, em busca de um marido que descobre estar morto e enterrado, parece uma cidade-fantasma, onde o luto permeia cada esquina e viela. Essa forma de intenso pesar acompanha a vida de Michael em Trágica Obsessão, que além de lidar com o falecimento de sua esposa e filha, também se culpa por seu envolvimento na tragédia que levou suas vidas. Após muitos anos, ainda longe de se recuperar do trauma, o personagem encontra uma mulher incrivelmente parecida com sua antiga companheira, e busca nela o amor que falta em sua vida. Com ecos bem claros de “Um Corpo que Cai”, de Alfred Hitchcock, o filme de Brian De Palma corporifica o fantasma em uma outra pessoa, em um thriller psicológico de alto calibre.

 

Com uma grande variedade geográfica, temporal e de gênero, os amores fantasmas se apresentam de todas as formas, nessa seleção que busca justamente olhar para a pluralidade dessa temática. David Foster Wallace, escritor norte-americano, usou em correspondências, cadernos e algumas histórias uma frase significativa: “Toda história de amor é uma história de fantasmas.” Sua origem é difícil de cravar, em si acompanhada de uma certa abstração, mas é dado que seu significado se prova nessa seleção de filmes; aqui esses fantasmas se materializam, na memória do outro, em sonho, ou às vezes em forma de tigre. Os convidamos para descobrir, na tela do CINUSP, como as coisas findas, muito mais que lindas, enfim ficarão.

 

Boas sessões!