PARANOIA


O dia tem tudo para ser normal até um objeto sumir da sua mesa de cabeceira. Você olha pela janela e suspeita se aquilo no seu jardim é mesmo o vulto de uma pessoa. Se você ouve uma conversa críptica entre dois estranhos ou se alguém na rua te encara por alguns segundos a mais que o normal, talvez estejam tramando algo ao seu redor. Do acúmulo dessas coincidências, surge a desconfiança – e da desconfiança, o impulso persistente de sempre olhar para trás.

De 1 a 21 setembro, o CINUSP apresenta uma programação de 16 filmes que simulam, em forma e conteúdo, os tormentos da “Paranoia”. Nas obras selecionadas, os retratos de personagens acometidos pela insegurança obsessiva não excluem o espectador do desespero por despir a narrativa e descobrir todas as armadilhas que tentam nos impedir de distinguir realidade e imaginação.

A Conversação que escuta um especialista em vigilância, no filme de Francis Ford Coppola, não abre margem para nenhuma certeza. Aqui, o uso ostensivo de aparelhos de espionagem de escuta implica em uma narrativa visualmente velada – o que alivia ainda menos o ouvinte desconfiado. Essa trama conspiracional é paradigmática de muitas produções cinematográficas das décadas de 60 e 70, que tematizaram o medo generalizado que explodiu após duas Guerras Mundiais, a Guerra Fria e, para os estadunidenses, a morte de John F. Kennedy, em 63. Não à toa, Oliver Stone adapta a investigação deste assassinato presidencial em JFK: A Pergunta que Não Quer Calar (1991), que é na freneticidade de suas mais de três horas de duração, assim como o caso real, combustível para muitas teorias da conspiração.

Estes mesmos medos também borbulhavam do outro lado do Atlântico. De 1970 a 1989, o regime comunista tcheco proibiu a exibição de Orelha, longa claustrofóbico que narra uma noite em claro de um oficial do governo e sua esposa que suspeitam estarem sendo espionados pelo próprio partido; em dúvida constante do que é verdade ou não. Se essa verdade pode ser invertida, no entanto, é o que pergunta a personagem de Alain Delon em Cidadão Klein (1976). Na Paris de 1942, um comerciante que se aproveita das mazelas do nazismo vê sua identidade em risco quando descobre que divide o mesmo nome com um homem judeu. Retrato da banalização do fascismo na Europa, este filme, em sua sessão do dia 16 de setembro, às 19h, será acompanhado de um debate com Denise Rollemberg, professora de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense, como parte da IV Semana Franco-Uspiana de Cooperação Científica.

Estes momentos de desordem política não esgotaram, nos anos seguintes, as fontes de inspiração para cineastas. Em Dublê de Corpo (1984), um homem espia a casa ao lado e acredita presenciar um assassinato. Brian de Palma se apropria desse mote hitchcockiano e o mergulha no universo dos filmes B e da pornografia em Hollywood, mobilizando recursos metalinguísticos que nuançam este thriller em constante diálogo com “Janela Indiscreta”. Trinta anos depois, premissa e estilo semelhantes também aparecem em O Mistério de Silver Lake – dessa vez, de forma a contrastar o cinema clássico com a cultura pop contemporânea. Nele, um jovem desce aos submundos mais absurdos de Los Angeles em busca de pistas que o ajudem a desvendar o desaparecimento de uma mulher. A experimentação com a linguagem é outro caminho que seguem as produções contemporâneas, como Paranoid Park. Aqui, Gus van Sant escolhe a não-cronologia para reconstruir as memórias de um skatista adolescente que encontra-se no meio de uma investigação policial. Entre sequências musicadas e passagens de voice-over, o resultado é uma narrativa em fluxo de consciência de atiçar os sentidos.

Muitos cineastas tematizam a paranoia abundantemente em suas produções, como é o caso de Roman Polanski em “Bebê de Rosemary” e “O Inquilino”. Em Repulsa ao Sexo, no entanto, o cineasta promove uma inversão: sua protagonista desconfia dos homens ao seu redor não pelo desenrolar da trama, e sim a partir de traumas e ansiedades que ela já carrega. Uma espacialidade dinâmica e, ao mesmo tempo, claustral delimitam um delírio que invade as quatro paredes de uma casa, tanto física quanto psicologicamente. O sintoma da opressão patriarcal aqui em jogo combina-se com outro que, em outra medida, manifesta-se na violência masculina em O Alucinado, clássico da fase mexicana de Luis Buñuel que explora a tensão entre os domínios das vidas pública e privada. Aqui, um homem bem-sucedido suspeita de traição e confronta sua nova esposa em acessos de possessividade. Este mesmo Ciúme, no filme homônimo de Claude Chabrol, é o sentimento invocado para refilmar um projeto inacabado de Georges Clouzot e, de maneira semelhante, construir um percurso imageticamente perturbador do declínio cognitivo e moral de um marido tomado pela obsessão.

Se não tomados pela loucura, esposos também podem demonstrar a vocação para a chantagem emocional. Nos anos 1930, a peça britânica “Gas Light” tornou-se um exemplo paradigmático de manipulação psicológica em cena. A adaptação deste texto às telas, em À Meia-Luz, é composta de uma encenação acurada e deu chance para Ingrid Bergman entregar, no papel de uma recém-casada que começa a duvidar da própria sanidade, uma de suas interpretações mais fascinantes. Reclusa às margens do litoral brasileiro, a protagonista de Excitação também possui preocupações parecidas: recuperando-se de problemas psicológicos, ela acredita que talvez nem tudo que vê pela sua casa seja fruto da imaginação. Este longa eletrizante de Jean Garrett, cineasta emblemático da Boca do Lixo, será exibido no CINUSP em nova cópia, restaurada e digitalizada pela Heco Produções em parceria com a Cinemateca Brasileira.

Não é necessário, no entanto, que o ambiente condicione o sujeito à paranoia – desde que ele já seja refém de seus próprios pensamentos. No único filme de terror de Ingmar Bergman,  o relógio marca A Hora do Lobo para deixar às soltas os medos de um pintor atormentado que tenta lidar com uma crescente crise psíquica, sugerida na mise-en-scène até tomar forma na assombrosa sequência final. Em Perfect Blue, a arte não é válvula de escape, e sim pesadelo. Essa emblemática animação de Satoshi Kon é uma história complexa e alucinante sobre a jornada de uma cantora pop que encontra-se presa na grande armadilha da indústria do entretenimento; uma que distorce, a todo momento, o limite entre ficção e realidade. A violência perturbadora que aos poucos aparece aqui está, em outra medida, presente integralmente no italiano Uma Lagartixa num Corpo de Mulher, típica do cinema de Lucio Fulci. Quando seus sonhos perturbadores parecem virar realidade, uma mulher é acusada de matar sua vizinha. É partindo dessa premissa que este giallo não abre mão de visuais impactantes para construir uma narrativa ambígua e regada de reviravoltas.

Junto à programação regular, o CINUSP também exibirá, às 21h do dia 5 de setembro, uma sessão especial de Donnie Darko, filme de 2001 que catapultou as carreiras dos irmãos Gyllenhaal e rapidamente se tornou um clássico cult. Nele, um adolescente tem visões recorrentes de um coelho gigante que o avisa que o mundo acabará em 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos.

Se ele acabará ou não, e todas as outras perguntas que se empilham sessão após sessão, é o que o CINUSP provoca o público a descobrir; mas sigam um conselho audaz: o de não acreditar demais no refúgio da sala de cinema, vigiar bem a tela e desvendar estas tramas que tanto pedem para serem espiadas. Cuidado, apenas, para não confiar muito nos espectadores ao seu redor.

Boas sessões!