QUARTO FECHADO


Quatro paredes e um teto separam pessoas e mundo externo, há uma porta que pode levá-las para fora, por que elas não saem? O cinema criou várias motivações narrativas e formais para o enclausuramento, e entre os dias 13 de outubro a 01 de novembro, o CINUSP exibe algumas delas na mostra Quarto Fechado

O Anjo Exterminador, dirigido por Luís Buñuel, é paradigmático na relação entre personagens e espaço fechado. Depois de um jantar cheio de pompa, um grande grupo de burgueses se junta em uma sala de estar para tomar café. Repentinamente, todos se sentem incapazes de sair dali. O mote surrealista do filme cria o ambiente perfeito para Buñuel tecer suas ácidas críticas à burguesia e deixar as máscaras sociais lentamente caírem. Se aqui se utilizam motivações surrealistas para o aprisionamento de seus personagens, Wolfgang Petersen parte para o extremo oposto, apresentando a história real de soldados nazistas presos dentro de um submarino no clássico O Barco. Observar a situação aterrorizante na qual o grupo está inserido oferece um panorama pouco debatido da Segunda Guerra Mundial: a luta sob a água e o aprisionamento dos soldados que operavam submarinos.

Em A Um Passo da Liberdade, a esperança da fuga é o que move as personagens. Aprisionados em uma cadeia na França, cinco homens começam a cavar um túnel para fugir. O diretor Jacques Becker atenta-se muito à disciplina do grupo e aos laboriosos processos exigidos para a fuga, mostrando em planos longos o esforço físico aos quais se submetem em troca da liberdade. No tunisiano Os Silêncios do Palácio, o desejo por liberdade também é peça-chave. Alia, uma jovem cantora, é obrigada a retornar ao palácio onde viveu como escrava ao lado de sua mãe, cuja memória remanescente é a de uma mulher abusada e trancada em um espaço no qual não cabia. Dirigido por Moufida Tlatli, o longa debate direitos reprodutivos e o papel da mulher numa complexa Tunísia colonizada. 

O aprisionamento é tão físico quanto metafórico em A Mulher da Areia, ao apresentar a história de um professor que se vê preso, acompanhado de uma mulher desconhecida, em uma cabana no fundo de um buraco no deserto. A tarefa sisífica que os dois recebem, de cavar e fornecer areia a um grupo de homens das redondezas, funciona como crítica à busca por sentido no lavor imparável do capitalismo moderno. O mundo do trabalho também é tema no brasileiro A Navalha na Carne. Adaptação cinematográfica da peça de Plínio Marcos, o filme conta a história de três figuras marginalizadas que se encontram dentro de um quarto de bordel e debatem suas situações de vida: uma prostituta é suspeita após o sumiço do dinheiro do seu cafetão, e a eles se junta o faxineiro da pensão. Se o isolamento gera brigas no filme de Braz Chediak, em O Farol os ânimos ficam ainda mais exaltados, que conta a história alucinada de um zelador e um faroleiro isolados numa ilha remota. Este clássico instantâneo do cinema de terror colocou Robert Eggers em outro patamar dentro de Hollywood, com sua fotografia pesada em preto e branco e com atuações estelares de Robert Pattinson e Willem Dafoe, que encarnam os sintomas do aprisionamento em um ambiente puramente hostil.

Ambientes fechados são perfeitos para o cinema de terror. Dois outros grandes exemplos serão apresentados em sessões únicas no Dia das Bruxas do CINUSP, em 31 de outubro: Skinamarink e Jogos Mortais. No primeiro, dois irmãos acordam no meio da madrugada e descobrem que as portas e janelas de sua casa desapareceram, assim como os seus pais. Na brincadeira com a forma e no uso de tropos do cinema experimental, o filme cria uma atmosfera amedrontadora ao passo em que as crianças começam a ouvir vozes e notar movimentos estranhos pela escuridão. Já a icônica franquia Jogos Mortais parte para o caminho do gore e do cinema de sangue e vísceras, apresentando a história do assassino em série Jigsaw, que brinca com suas vítimas em jogos violentos. O CINUSP apresenta os três primeiros capítulos desta franquia em maratona que inicia-se às 19h e termina a tempo do espectador sair assustado para a sua festa de Halloween favorita. 

Há quem chame Alien - O Oitavo Passageiro de terror, há quem chame de ficção científica e há quem não acredite em gêneros cinematográficos, mas é fato que o filme se tornou um clássico do cinema. A tripulação da nave Nostromo recebe um novo integrante: um alien que começa a caçar os humanos implacavelmente. O protagonismo feminino, na figura de Ripley, o design icônico e a famosa cena do nascimento do Xenomorfo fez com que o filme marcasse gerações. O suspense cria-se, em grande parte, pela ausência do alien que se esgueira pela nave, estratégia diferente da que Hitchcock emprega em Festim Diabólico. É esta a trama: dois amigos de alta classe acreditam ter cometido o crime perfeito após matarem um rapaz. Dispostos a brincar com isso, os dois decidem, junto da cumplicidade do espectador, dar uma festa em seu apartamento enquanto o corpo do falecido encontra-se num baú na sala de estar. Os oitenta minutos de filme são apresentados num fôlego só, em plano-sequência com cortes escondidos, oferecendo a sensação de assistir ao desenrolar dos fatos em tempo real nesta obra-prima de Alfred Hitchcock. 

Se Hitchcock interessou-se por sequências sem cortes, é claro que um de seus grandes admiradores também se interessaria. Em Olhos de Serpente, Brian de Palma conta a história de um policial corrupto que vai a um cassino assistir a uma luta de boxe e, lá, torna-se responsável pela investigação de um assassinato que acontece durante o combate. Para isso, as portas do cassino se fecham e todos estão presos até que o criminoso seja encontrado. De Palma alterna entre planos-sequência sofisticados e cenas recortadas, possibilitando que o espectador investigue as imagens de forma detalhada ou se perca no labiríntico e opulento cassino. De Palma apresenta uma das formas de investigar ambientes fechados diferente do que é feito em 12 Homens e Uma Sentença. Também cria da Nova Hollywood, Lumet decide fazer seu filme restrito a uma pequena sala de um tribunal. Doze homens precisam chegar a um consenso sobre a pena de um adolescente acusado de assassinato: onze votam pela condenação, mas um deles decide investigar mais a fundo o caso, o que gera revolta na sala. Cheio de diálogos poderosos e atuações envolventes, o filme conta também com uma direção cirúrgica, que utiliza das lentes e posicionamentos de câmera para criar uma sensação gradual de claustrofobia.

O esmero técnico de diretores em ambientes fechados fica explícito também em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. O alemão Rainer Werner Fassbinder decide posicionar Petra von Kant em um quarto para contar a história de uma paixão que se torna obsessiva. A câmera ora inquieta, ora cirúrgica dá vida ao espaço e ao grande abismo que existe entre apaixonar-se e mostrar-se apaixonado. Fechar-se em ambientes pequenos e investigá-los é mote também de duas obras experimentais que fecham a curadoria da mostra: Essa Secretária Eletrônica Não Recebe Mensagens e Veneza Não Existe. Respectivamente longa e curta-metragem, os filmes focam no escrutínio do espaço fechado como metáfora e dissecam cada parte de seus cenários com atenção quase obsessiva, num diálogo notável que motivou a exibição em conjunto destas obras de Alain Cavalier e Jean-Claude Rousseau.

O convite está dado: sente-se na sala fechada do CINUSP e investigue os microcosmos profundos que o cinema consegue criar entre quatro paredes. Não saia antes do filme acabar. Boas sessões!