EM CARTAZ

OPULÊNCIA E DECADÊNCIA


A decadência é o destino que a História reserva aos grandes impérios, porque todas as riquezas têm de viver o esvaziamento fatal de seu declínio e tudo que sobe às alturas magnânimas do poder há de cair vertiginosamente às profundezas da miséria. Neste deslocamento quase naturalmente afeito ao furor do drama e do conflito, se inscrevem as narrativas de ascensão e queda, tão caras à majestade da forma cinematográfica. 

 

A narrativa se engrandece tão logo as personagens opulentas têm de se haver com a perda de seu glamour. E é desta perda, tão diversamente representada, que se constitui a mostra “Opulência e Decadência”, que acontecerá entre os dias 03 e 30 de Novembro no CINUSP.

 

A formulação paradigmática travada na oposição entre alvorecer e crepúsculo confunde-se, frequentemente, com o imaginário grandioso das narrativas dinásticas europeias que o cinema sempre ajudou a construir. Exemplo deste interesse é Maria Antonieta, dirigido por Sofia Coppola e símbolo da decadência efetiva do Antigo Regime europeu. Em 1793, na altura de sua decapitação, todo um sistema cai com o peso de sua cabeça e, em 2006, o seu gesto derradeiro é repetido com algumas marcas do tempo da representação — que não é senão o tempo de sua diretora, o tempo do cinema, o século XXI. Cleópatra, de Júlio Bressane, se debruça sobre uma figura histórica de monumentalidade comparável de uma forma muito diferente. Apesar da similaridade entre as luzes e os padrões cromáticos da direção de Coppola, no retrato de Bressane a perda inevitável dos poderes de Cleópatra não é tão evidente a ponto de que lhe decepem a cabeça. De fato, parece haver uma sutileza na representação, como a dizer que tamanha suntuosidade encerra em si a sugestão de sua queda, mesmo que esta apareça somente como um motivo virtual, sempre insinuado — dito, inclusive —, mas nunca consumado ao alcance da câmera. 

 

Em Edward II, de Derek Jarman, o tema da nobreza reaparece como fundo sobre o qual o diretor dá a ver uma clássica trama de vingança e conspiração contra um poder instituído. A pobreza dos cenários nos faz pensar em uma monarquia deslocada e em uma releitura contemporânea de uma forma de dominação e poder que está efetivamente fora de seu tempo. Parece ser este o caso, ainda, das remanescências estruturais do feudalismo indiano em A Sala de Música, de Satyajit Ray, que retrata o contrassenso anacrônico de um senhor de terras despossuído que passa a melancolia de seus dias a rememorar as posses de outrora. A decadência, neste sentido, operaria como um mecanismo de movimentação mnemônica, isto é, de retorno às riquezas passadas, ausentes no presente, ou de projeção de riquezas futuras. Em Xadrez do Vento, após a morte da matriarca de uma família aristocrática do Irã, os pretendentes à sua herança caem vítimas da degeneração de seus próprios caracteres, que sempre olham adiante com a ganância em primeiro lugar, a ponto de que seus olhares só dessem a ver, no dobrar do tempo, uma montanha de joias.

 

O Leopardo, épica adaptação do romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa dirigida por Luchino Visconti, é articulado ao redor de uma família aristocrática diante da materialização política da crise no contexto da unificação da Itália na década de 1860. O filme opõe as palpitações da unificação italiana ao signo da tradição — autônomo, conservador e principesco — já em vias de se defasar. O filme de Visconti é a representação da crise em toda a sua potência de acontecimento, porque se vê, por meio de seu caos historicamente situado, a regra tornando-se exceção e a riqueza perdendo o seu sentido. Em A Princesa das Ostras, por outro lado, Lubitsch constrói uma nobreza já empobrecida e, assim, dá conta do processo já consumado em uma modulação irônica e menos cerimoniosa do que o de Visconti. A riqueza, aqui, está nas mãos de um magnata dos negócios de ostras que, em um gesto de deslocamento semântico considerável, passa a ser efetivamente um rei, como se a narrativa estivesse a forjar um parentesco pelas sujas vias do comércio, comparável aos rastros da vontade divina incumbida de eleger as linhagens arcaicas. 

 

A antiga riqueza já não é mais a mesma e a imagem de Lubitsch parece situar-se no alvorecer de um novo horizonte, ao pé do qual encontra-se a gloriosa efígie de Cidadão Kane, marca absoluta deste novo tempo. No filme de Welles, a vida de um empresário dos jornais se desdobra ao redor de um único gesto: o enriquecimento. Assim, a forma e a narrativa são sempre acompanhadas da possibilidade de uma suntuosidade exaustiva perfeitamente simbolizada nos planos finais do filme, em que todo o campo de visão da câmera é tomado pela materialização de uma vida desfeita em nome de suas posses. A esta corrupção é dedicado o tom satírico e absurdo de O Discreto Charme da Burguesia. Buñuel, por meio de um surrealismo arraigado em sua obra desde a década de 1930, traça um paralelo imediato e transparente entre a opulência material e a sordidez moral, de tal forma que a burguesia pareça uma instituição de costumes alienígenas e francamente incompreensíveis. Não há outra saída para a fartura senão o declínio imperativo de todo e qualquer caráter por ela atravessado.

 

Outra figuração possível da corrupção que ascende vertiginosamente ao poder é a que aparece em Cassino. Inclinado à representação dos jogos e à estrutura velada da corrupção que os preside, Martin Scorsese situa o enredo na cidade que melhor sintetiza a opulência americana: Las Vegas. A roleta tem a sorte como constituinte de sua operação e contém em si o lucro e o prejuízo como possibilidades de consumação imediata. Daí a casa de jogos como imagem que concretiza as intenções de representação da ascensão e da queda, porque se pode tudo perder ou tudo ganhar em um único lance de dados. As personagens veem, na figura do cassino, a imagem metonímica da riqueza, por vezes esquecendo-se que a possibilidade gloriosa de enriquecimento que ele encerra se traduz, mais frequentemente do que não, em seu absoluto fracasso. 

 

Bem como as apostas, a pornografia é uma indústria que já nasce desvirtuada, pois a depravação e a indecência são as antonímias declaradas da boa moral. Boogie Nights, ao contrário de Cassino, abre as portas da devassidão sem nunca iluminá-la a plena luz. O pudor da representação acontece à medida que se instituem os predicativos morais de um código de normatização capitalista e que se veicula uma imagem proibida e proibitiva. Paul Thomas Anderson vê a pornografia como objeto muito distante de sua obra, mas, sem saber, cai vítima de uma obscenidade pudica e conservadora da representação, por mais contraditória que pareça a formulação. 

 

O partido formal de Pasolini em seu Salò, ou os 120 Dias de Sodoma é, neste sentido, plenamente oposto ao de Paul Thomas Anderson. Salò integra um projeto de crítica aos fascismos modernos baseado em uma escolha discursiva polêmica e transgressora: declarar o mal por meio de sua demonstração desvelada. Pasolini torna possível a visão de um inferno burguês em que impera a inversão da vida e a anarquia sobrevive na forma do poder. A volúpia coincide perfeitamente com a perversão e libertinos e é na crueldade de um horrível desejo que o filme encontra a sua denúncia. A exibição do filme de Pasolini será acompanhada, no dia 06/11, de um debate com Andityas Matos, professor de Teoria do Direito na UFMG e pesquisador da obra do diretor.

 

Como Salò, Rio Babilônia, de Neville D’Almeida, retrata os baixos prazeres de uma burguesia insaciável, tão estrangeira quanto nativa ao Rio de Janeiro. A pobreza de uns continua a significar a riqueza depravada de outros, mesmo que o discurso de quem o declare não seja banhado de um moralismo ferrenho e mesmo que a devassidão do sexo não seja um bem exclusivo dos opulentos. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e seu Amante também explora os desejos carnais, mas, desta vez, os tensiona na direção de um prazer da carne pela carne — ou de uma aproximação entre o prazer da boca e o prazer do sexo —, de forma que o ambiente do restaurante se degrada até se desvirtuar totalmente. A relação entre a personagem do ladrão e sua esposa é, também, como em Pasolini, mediada por uma proibição unilateral tão constantemente reiterada quanto transgredida, e a direção de Peter Greenaway alia a opulência grotesca da narrativa à forma do registro através da simetria exagerada dos planos e do artifício engenhoso das mudanças de figurinos sempre suntuosos e coloridos. 

 

Também em um ideal de abundância da forma se inscreve Helter Skelter. Parte de uma filmografia comprometida com os excessos e radicalismos estéticos e ele mesmo um filme debruçado sobre a fabricação excessiva da forma — do corpo — de sua personagem, Helter Skelter esmaece a linha de fronteira entre o belo e o grotesco mesmo na pele de Lilico. O que está fora e que, portanto, se pode ver refletido nas molduras narcísicas do espelho ou da câmera, definha à medida que ultrapassa as capacidades sensíveis da artificialidade interior.

 

É desta artificialidade que parece Coppola falar em Megalopolis. Condensação esquizofrênica e magnânima de uma série de ideias sobre cinema e inflamado pelas técnicas de um filme-sonho, Megalopolis consuma a colisão final de manifestações da barbárie — Roma, Estados Unidos — tão distantes no tempo. O mesmo tempo, aliás, que sente a obra cinematográfica de Coppola ao projetar para si um fim tão grandioso quanto o auge de sua expressão. Em Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder se debruça sobre a máquina do cinema como problema, ela mesma a possibilitadora de seu ofício e produtora de riquezas impensáveis, a fim de que se tematize o sentimento de um tempo sem lugar, de um tempo já morto, mas do qual ainda restam imagens fugidias — da atriz, por exemplo, estrela de outrora, vergada já ao peso de seu próprio corpo e das ruínas de toda uma indústria. Trata-se, esta imagem, do receptáculo de uma decadência que extrapola os limites da narrativa, uma vez que a história de Norma Desmond se confunde com a vida de Gloria Swanson, a atriz que a interpreta sob a direção de Wilder. A sua exibição, no dia 17/11, será acompanhada de um debate com Eduardo Victorio Morettin, professor de História do Audiovisual da ECA/USP e diretor do CINUSP.

 

A imagem de Disintegration Loop 1.1 é a síntese de uma certa ideia de americanidade. Fruto de um ímpeto vanguardista de deterioração material e pragmática de fitas de áudio, o filme se baseia na repetição de um som ruidoso sobreposta a um plano estático tomado pela fumaça da queda do World Trade Center em 11 de Setembro de 2001. William Basinski, seu diretor e compositor, traça o gesto da decadência em três eixos de representação: a princípio, demonstra, a um nível representativo da imagem, a decadência do império americano, simbolizada pela ruína efetiva das Torres Gêmeas; sonoramente, por outro lado, ouve-se a decadência paulatina que tende finalmente ao silêncio — perfeito ocaso do ruído — e que é acompanhada de um movimento análogo e formalmente comprometido com a imagem, em que o diretor esmaece absolutamente o filme, que termina em uma profunda escuridão. Na noite silenciosa dos últimos instantes de seu filme, Basinski postula o fim da imagem e do som, que toma de assalto, por uma hora, a luz de nosso cinema.

Boas sessões!