EM CARTAZ

CASOS DE FAMÍLIA


A harmonia em um lar pode até se fantasiar como perene, mas basta um atrito para abalar toda a estrutura familiar. A aparente união dá lugar ao desgaste, um grande descompasso entre personagens ligadas por seu próprio sangue. De 1 a 19 de dezembro, o CINUSP apresenta Casos de Família, uma programação dedicada a filmes que exploram a força dramática que surge dos laços ruidosos que uma família carrega. 

Em Meet Me In St. Louis, a típica família americana entra em crise logo após a chegada da feira mundial de 1904 na cidade e o pai receber uma proposta para trabalhar em Nova York. O diretor Vincente Minnelli busca abalar a estrutura pelo que é externo, potencializando o conflito interno exatamente pelo que não é do controle de nenhum membro. A idealização da família é posta em prova enquanto seus integrantes sonham com o que vem de fora. O descompasso em uma relação íntima causado pelo irrefreável avanço capitalista surge de forma semelhante em Soberba, segundo longa-metragem de Orson Welles, em que uma família influente politicamente sofre as consequências da chegada do automóvel. A tão concreta família burguesa colapsa enquanto seu herdeiro se apaixona pela filha de um empresário do ramo automobilístico, razão fundamental dessa ruína. 

A paixão mal vista pela família não só aparece no cenário capitalista americano, mas também em uma vila camaronesa. Muna Moto, de 1975, conta a história de um delicadíssimo romance atormentado por rígidos costumes que o impedem de se concretizar. O amor jovial não só rivaliza com a sociedade patriarcal, mas também encontra dificuldades dentro do próprio núcleo familiar. O tio do protagonista, que poderia pagar o dote para seu sobrinho, decide ele mesmo comprar a mulher. De forma não tão distante, Um Casamento à Indiana constrói uma grande novela, povoada por comentários sobre luta de classes, revelações e romances proibidos que acabam por revelar infinitas feridas abertas de uma família, da sociedade indiana e do cinema de Mira Nair. Se por um lado um amor se torna quase proibido exatamente pela relação da família com o mundo, por outro é exatamente dessa relação que fará com que o matrimônio seja visto como algo fundamental. Em Também Fomos Felizes, uma mulher sofre a pressão de sua família para que se case logo e com um homem mais velho, bem quisto por respeitar os bons costumes da tradição. A oposição entre o caminho sugerido pela família e a vontade da personagem de seguir o que o coração manda e se casar com um homem viúvo torna o filme brilhante em retratar um conflito que parece envolver só um indivíduo, mas que se complexifica exatamente no momento em que se encontra com a família. É brilhante não só na sua atenção ao cotidiano de cada um dos membros, mas também por tratar de um complexo atrito familiar com tanto tato, traço marcante na filmografia do diretor Yasujiro Ozu. 

Nem toda família, porém, nasce de vínculos tradicionais. Seguindo a linha de um modo de produção tão subversivo quanto o da pornochanchada, Os Homens Que Eu Tive, filme brasileiro lançado em 1973 e que será exibido em uma restauração 4K em parceria com a Cinemateca Brasileira, tem uma protagonista que organiza sua vida amorosa e doméstica seguindo lógicas próprias, redimensionando a formalidade desse tipo de núcleo e quebrando com as formas de convivência convencionais de um patriarcado. A sessão do dia 3 de dezembro, às 16h, será seguida de debate com Tereza Trautman, diretora do filme.

Da mesma forma que a família se fragmenta, também pode se reinventar. Em Os Incríveis, a desunião na vida doméstica encontra caminho para se restaurar exatamente por meio de um perigo maior externo a eles: a ameaça iminente de um supervilão. O problema coletivo da família se torna exatamente o meio para sua reconciliação, da mesma forma em que Pequena Miss Sunshine. A família naturalmente imperfeita precisa fazer uma viagem em uma velha kombi para levar a pequena filha para uma competição mirim de beleza. O convívio extremo e todo o caos em prol de um “bem maior” acabam por demonstrar a forma mais genuína de amor e cuidado que poderiam ter uns com os outros. Já em Seguindo Em Frente, o reencontro de irmãos na casa antiga em que viviam, agora cada um com sua própria família estabelecida, revela um olhar bastante generoso do diretor Hirokazu Kore-eda sobre uma relação conturbada por mágoas que somente são reveladas ao decorrer do filme. A escolha em manter o problema no não dito não só cria um interesse em descobrir a complexidade das dores que ali se apresentam, mas é também uma forma de olhar para os gestos entre os personagens sem qualquer julgamento moral, ainda que entre eles exista uma ferida em aberto.

Mesmo quando o fim não é de resolução desses conflitos, ainda assim a família pode aparecer como um lar passível de retorno. Em Fanny & Alexander, duas jovens crianças embarcam em uma jornada tipicamente natalina, começando em uma casa preenchida por uma enorme família que se deteriora ao ponto de levar os dois a um novo lar hostil, até que conseguem retornar ao conforto do ponto inicial, ainda que ressignificado. Também interessado na reunião de uma família antes separada, Segredos e Mentiras retrata a união tardia de uma filha e sua mãe biológica, revelando afetos e traumas de algo que até então pouco poderia ser visto como uma família. A inspiração do diretor Mike Leigh nas histórias reais da classe operária inglesa carrega o filme para um ponto tocante, um drama sólido que parece bem mais perto da realidade que qualquer outro filme.  O retrato desse núcleo familiar que se atrela a uma memória distante também surge no filme de Mohsen Makhmalbaf lançado em 1996, Gabbeh. Um casal de idosos vê magicamente surgir de um antigo tapete uma jovem que conta as histórias do clã representado no desenho da peça decorativa que também é muito mais que só um ornamento. O relato não é só contado verbalmente, mas também se mistura na narrativa e se confunde com a memória dos limpadores de tapetes. O atrito familiar não é só relatado, mas também sentido, de três distintas perspectivas: as palavras da jovem, a lembrança dos idosos e o desenho. 

O núcleo familiar não só aparece como um porto seguro para seus próprios problemas. Em Hereditário, a família é assombrada por antigos traumas logo após sua matriarca falecer. Como uma maldição familiar, o atrito aparece exatamente como consequência do que não foi resolvido antes. O passado de uma família trazendo à tona a impossibilidade de se fazer funcional no presente também aparece em Árvore da Vida. A memória de um pai rígido e violento, a perda de um irmão ainda jovem e uma mãe que nunca deixa de sonhar tornam o então protagonista alguém amaldiçoado pelo que vem de uma lembrança distante, imagéticamente representado pelas imagens fascinantes e registradas em lente aberta pelo filme. De forma infinitamente mais crua, Ossos também retrata uma família quebrada. Acompanhando um pai cuidando de seu filho após a mãe os abandonar, Pedro Costa opta por fazer o oposto da plasticidade encantadora do anterior. Acompanhando histórias reais da favela de Fontainhas, o diretor enquadra esse núcleo familiar desestruturado junto com a sujeira das ruas, a miséria que é quase tátil e a frieza de uma atuação que se confunde com o real. 

É impossível pensar em um grande conflito familiar no cinema sem se lembrar de uma famosa família de mafiosos protagonizada por atores reconhecidos como Marlon Brando, Al Pacino e Robert De Niro. Acompanhar, ao longo dos três filmes, o passar do tempo nas gerações da família Corleone enquanto as relações afetuosas e de poder se transformam é uma experiência que é engrandecida ao assistir o todo na íntegra. Não só a ascensão, manutenção do poder e queda de Michael, mas também toda a conexão das outras personagens com isso. Em uma exibição mais que especial, a trilogia Poderoso Chefão será exibida em um Noitão, terminando no último ato com o novo corte da versão ideal de Francis Ford Coppola, O Poderoso Chefão CODA: A Morte de Michael Corleone.

Sozinho ou acompanhado de pai, mãe, tios, avós e irmãos, o CINUSP convida a todos a contemplar uma seleção de filmes que representa a família no que a define da melhor forma: um enorme carinho demonstrado do jeito mais confuso possível.